Jornal Folha da Tarde – São Paulo, 06/09/1976.
Torrieri Guimarães
Eis aqui uma antiparábola. Não é o filho pródigo que está voltando à sua casa farta, rica, para uma festa de reencontro que deverá durar muitos dias – “porque estava perdido e foi encontrado”; nem é o filho mais novo, no ardor de sua juventude, que tivesse desejado conhecer o mundo e tudo quanto ele oferece de oportunidades para a recriação da vida, pelo contrário é o irmão mais velho que esteve fora, que lutou e sofreu, e agora volta; nem é o filho que regressa depois de ter perdido toda a sua fortuna, de ter esbanjado a sua parte da herança paterna, e ter comido a mesma comida disputada aos porcos – em vez disso se vê um homem no caminho da completa maturidade, cercado de um halo de heroísmo, que venceu a Grande Capital e volta para trazer aos seus as esperanças de uma redenção.
É o anti-herói, da antiparábola. E entretanto todo o romance de Antônio Torres acaba constituindo-se numa extraordinária parábola, densa de ensinamentos, que se precisa colher devagar, sem pressa, na dinâmica dos diálogos e no estudo sereno das situações, no confronto dos personagens e nos quadros de decadência física e moral que ele apresenta. A parábola de um homem que retorna a sua terra e sua gente para acionar velhos mecanismos de lembranças e permitir, a partir da frustração de sua imagem, que se deteriora e se destrói, uma apreensão completa da realidade que a todos envolve e condiciona. Como se o pobre enforcado, com seus despojos gloriosos, o relógio de pulso e os óculos rayban, ligado à história de todos e de cada um, como produto do meio, deflagrasse um processo de tomada de consciência.
Agora que ele esta morto, e com ele o mito e as esperança, quebrada a imagem da grandeza sonhada, destruída a ponto entre a realidade e o sonho, é preciso que cada um, na medida de suas forças, aceite a sua derrota ou a sua miséria, ou se insurja contra eles, tentando fugir ao circulo vicioso das tradições. Da cultura cristalizada, do conformismo, da aceitação passiva dos desníveis sociais, refazendo a frágil ponte entre a Grande Ilusão (São Paulo) e a Dura Realidade (Junco). Apesar do nome da cidade e de seus personagens, o romance pode situar-se no universal, porque a situação que encena afeta a muitos grupos sociais, diz respeito a coletividades inteiras, que tanto podem ser a dos insulados no sertão, com seus costumes centenários e seus condicionamentos, despertados por estímulos que não compreendem e por isso também incapazes de um comportamento adequado – isto é, o pouco preparo para as técnicas novas de cultivo e de financiamento bancário, que resulta em um conflito eterno entre o moderno e o antigo – como também a luta de quaisquer comunidades pobres, com os sonhos dourados da sociedade de consumo (o automóvel, o televisor, os gastos facilitados) e a miséria sabiamente controlada por computadores. Antônio Torres dá um grande salto de “Um Cão Uivando para a Lua” para este “ESSA TERRA”. Menos discursivo, contido e sóbrio em sua linguagem, ele sabe agora conter-se no essencial de sua narrativa, reproduzindo com mais verdade e menos demagogia (no sentido clássico, irmão) a realidade social resultante do entrelaçamento daquelas vidas do Junco. O mesmo que dizer que os tipos não são aqui vistos por uma perspectiva ideal, mas reproduzidos em toda a sua grandeza e suas misérias; como se o autor tivesse melhor dosado as suas emoções, sem deixar se dominar por elas, mas conduzindo-as no sentido de uma recomposição de momentos básicos para uma montagem a mais exata dos quadros de sua denúncia.
E ai esta a palavra: Antônio Torres não escreve por diletantismo, nem por simples e utilitária profissão. E um pesquisador atento. Na raiz de seus trabalhos esta a ansiedade do artista que busca decifrar-se e decifrar aos seus iguais (para não ser devorado). Depois de ter esperado e sonhado, como Totonhim, ele compreende: e tendo compreendido, não pode mais ficar indiferente, acomodar-se, aceitar a velha e insustentável problemática de sua existência. Ele também precisa partir (o eu significa tentar a mudança). Para o homem comum, que é Totonhim, é imprescindível atravessar a ponte entre a Realidade e o Sonho, para reconstruir-se (ou buscar a reconstrução), definir-se.
Para o escritor resta (ainda) a palavra. Ele compreendeu, ele
denuncia essa problemática social: a dissolução da família, pela
miséria, pelo desamor, pela prostituição; a exploração da ignorância, o
abismo entre gerações e entre pólos culturais e econômicos; a violência
e o esfacelamento do homem que perdeu as raízes e despersonalizou-se. E
denuncia. Como quem enxerga além dos véus das aparências.
“Desde João Guimarães Rosa não se apresentou nenhum escritor brasileiro que descrevesse, poeticamente e com vivência, o panorama belo-horrível do Sertão: o isolamento da noite tropical, quando o espírito dos mortos vem à superfície e os morcegos voltejam na penumbra, o revérbero do mormaço do meio-dia, o impiedoso calor causticante. Antônio Torres, que como menino escrevia cartas para os moradores da vila ou lhes lia as que raramente chegavam das distantes capitais, consegue neste curto romance uma verdadeira obra-prima.”
Wolfgang Eitel, no Süddeutsche Zeitung, Alemanha