Marcelo Brito da Silva (UEFS) (2)
A infância é um momento privilegiado da vida de um escritor, de onde ele pinça retalhos de experiências que podem servir de pontos de partida para a aventura da ficção. No artigo de Aleilton Fonseca, cujo título começa sugestivamente em “Escreviver…”, ele destaca, tomando como exemplo dois contos de sua própria autoria, que
a vida nutre a ficção, as vivências da infância constituem materiais privilegiados. A criança vive situações e registra impressões que estão muito além de sua maturidade e, portanto fogem à sua compreensão mais profunda. Guardados na memória, essas impressões e registros afloram à mente do adulto que, então capaz de melhor compreender e, em alguns casos, encontrar significados e acomodações de sentido, tornam-se, para os escritores, elementos de recriação, forjamento e estruturação, como argamassa de escritos que se fundamentam na biografia, mas se estatuem como ficção. (FONSECA, 2005, p.77)
No prefácio de Meninos, eu conto, Antonio Torres escreve: “Estas histórias […] são de outra era. Mas ainda compartilho os sonhos, os sentimentos e os conflitos desses meninos. Um dia eles e eu já fomos as mesmas pessoas. Ou por outra: até hoje me sinto como se fosse um deles.” (TORRES, 1999, p.10). Com efeito, o livro reúne três contos que remetem a experiências de uma infância sertaneja, com suas alegrias, frustrações e descobertas, narradas pela voz do menino ou que têm o menino como personagem principal. O que interessa ressaltar é que, como afirma Aleilton Fonseca, em resenha sobre o livro, os meninos das histórias e o narrador adulto se refletem na escrita, como num jogo de espelhos “e demarcam o seu distanciamento no tempo e a sua proximidade afetiva.” (FONSECA, on line) É pelo olhar do menino, ressignificado pelo narrador- autor (3), que podemos investigar o imaginário do sertão que se emoldura no conto em apreço.
1 Artigo apresentado como comunicação oral no Seminário Narrativas de Viagens do Junco ao Mundo: 70 anos de Antonio Torres, realizado nos dias 8 e 9 de setembro, na Universidade Estadual de Feira de Santana, Bahia.
2 O autor é mestrando do Programa de Pós-Graduação em Literatura e Diversidade Cultural da Universidade Estadual de Feira de Santana – UEFS e bolsista FAPESB.
3 Adotamos aqui o conceito de “autor implícito” proposto por Wayne Booth, no livro A retórica da ficção, segundo o qual não se pode apagar a presença do autor na obra. Para Booth, o narrador, assim como outros elementos da narrativa, são manipulados pelo autor implícito que é uma imagem do autor real criada pela escrita. (BOOTH, 1980).
Miguel Torga (4), de modo análogo, ambientou muitas de suas histórias no interior rural de sua infância, em Trás-os-Montes. Nelas, encontra-se um painel de tipos os mais diversos, heróis e anti-heróis, homens, mulheres, velhos e crianças, que compartilham uma fraternidade de raiz e que emprestam aos contos um tema central, nas palavras de Oscar Lopes – a luta pela sobrevivência (apud SANTANA, 2008). Nesse mar de histórias torguianas, encontramos alguns contos que focalizam o olhar deslumbrado e às vezes desiludido da criança, que tentando entender o espetáculo da vida rural, traça um perfil do sertão português, que não se mostra muito diferente do sertão baiano das narrativas de Antonio Torres, onde as personagens vivem o calvário da enxada cotidiana.
(4) Miguel Torga, pseudônimo literário do médico Adolfo Correia da Rocha, nasceu em 1907, em São Martinho de Anta (Trás-os-Montes) e faleceu em Coimbra, em 1995. Sua obra multifacetada envolve poesia, conto, romance, diário, relatos de viagem e teatro. Destacou-se como contista, sendo apontado por alguns críticos como um dos maiores escritores do gênero na literatura portuguesa contemporânea.
Cid Seixas chama atenção para o aspecto autobiográfico que também sublinha as narrativas de Miguel Torga. Seixas argumenta que a ficção do escritor transmontano “[…] é construída a partir de pedaços vivos da realidade agreste da sua região natal. Os fatos mais insólitos e aparentemente criados pela fantasia são, na verdade, reconstituições de experiências vividas.” (SEIXAS, 1996, p.7).
Vale ressaltar que a ideia de memória que aqui desenvolvemos descarta a possibilidade de um resgate absoluto do passado. O passado é revisitado e ressignificado à luz do sujeito que lembra e que não pode desvencilhar-se dos condicionamentos do presente. Como explica Ecléia Bosi,
A lembrança é uma imagem construída pelos materiais que estão, agora, à nossa disposição, no conjunto das representações que povoam nossa consciência atual. Por mais nítida que nos pareça a lembrança de um fato antigo, ela não é a mesma imagem que experimentamos na infância, porque nós não somos os mesmos de então e porque nossa percepção alterou-se e, com ela, nossas idéias, nossos juízos de realidade e de valor. (apud DIAS, 2006, p.33).
Com isso em vista, retomamos o pensamento de Aleilton Fonseca, quando afirma que a memória, ressignificada pelo escritor que recorda o passado, aponta para acontecimentos que fizeram parte de sua biografia, mas que, na verdade, ganham na
escrita nova força e, principalmente, novos sentidos, ou seja, aqueles construídos pela arte da ficção. O impulso biográfico, assim, não pode ser ajuizado como um elemento que reduz ou limita o valor de uma narrativa ficcional.
O conto Por um pé de feijão começa com o menino narrador contando o caso da surpreendente abundância ocorrida certa feita no Junco (5), traduzida numa colheita farta de feijão e numa paisagem a “explodir de beleza” (TORRES, 1999, p.31). Mas tal fartura é colocada, desde o início, como um caso de exceção: “Nunca mais haverá no mundo um ano tão bom”. (TORRES, 1999, p.31). A experiência era tão inusitada que o menino narrador se esquece até de frequentar a escola. “Agora dava gosto trabalhar”. (TORRES, 1999, p.31) Esse comentário ressalta a contrario, a luta muitas vezes sem compensações do homem com a terra do sertão.
A paisagem é retratada em harmonia com o povo a celebrar, extasiado, a generosidade da terra. A descrição do espaço lembra um cenário quase idílio, mas que mostrará os seus “poréns”, em consonância com a indagação da criança quase em tom de presságio: “Toda plantação parecia nos compreender, parecia compartilhar de um destino comum, uma festa comum, feito gente. O mundo era verde. Que mais podíamos desejar?” (TORRES, 1999, p.32, grifo nosso)
Daí, o menino discorre sobre a colheita, o armazenamento, os preparativos para a bata do feijão, todos a apostar num resultado cada vez mais otimista. Quando o menino retorna à escola, não entende a professora que fala em “perder o ano”, sendo que, para ele, estaria a ganhar o ano, já que aquela colheita farta era sinônimo de estabilidade e de dias sem fome. No entanto, ao voltar da escola, o menino testemunha o que para ele foi “a maior desgraça” (TORRES, 1999, p.33), ou seja, o espetáculo da colheita de feijão sendo toda consumida pelo fogo. A criança, tateando em meio àquela tragédia, procura entender e pesar o acontecido lendo o rosto e o palavreado dos pais: “Durante uma eternidade só se falou nisso: Deus põe e o diabo dispõe.” (TORRES, 1999, p.34) É interessante notar que o autor não “atualiza” a experiência do narrador, prefere manter o tom de inocência e de incompreensão para representar as reações do menino diante das circunstâncias: “E eu vi os olhos de minha mãe ficarem muito esquisitos […] E vi os meninos conversarem só com o pensamento […] e minha mãe
(5) Terra natal de Antonio Torres, hoje Sátiro Dias, cidade situada no sertão baiano, a 205 Km de Salvador.
falando, falando e eu achando que era melhor se ela calasse a boca.” (TORRES, 1999, p.34).
Como observador daquele sofrimento que também era o seu, o menino narrador percebe a atitude do pai que, após um período de angústia silenciosa, resolve romper com o ciclo de murmurações da família e juntar os retalhos de esperança: “Deus tira os anéis, mas deixa os dedos. […] Agora não se pensa mais nisso.” (TORRES, 1999, p.35) O menino nota a atitude do pai, e, solidário, pensa consigo: “O velho está certo.” (TORRES, 1999, p.35) Esse comentário derradeiro aponta para a vitalidade do homem sertanejo e sua resignação diante de um destino na maioria das vezes adverso.
Por um pé de feijão sintetiza talvez a primeira experiência de perda e de desilusão do menino sertanejo, que cedo na vida aprende a conviver com as privações. Não é só contra a escassez da terra e das benesses sociais que ele precisa lutar, somam- se a elas os golpes do destino.
O conto O cavaquinho, de Miguel Torga, posiciona o foco narrativo num menino pobre de dez anos de idade, que, a despeito da extrema miséria em que vive com os pais, recebe a promessa de que ganharia um presente no natal.
No transcorrer do conto, o narrador mergulha na psicologia do pequeno Júlio e revela uma mistura de esperança e apreensão, pois o sonho do presente poderia desaparecer sob a sombra de tantas privações. O enredo se desenvolve equilibrando de um lado a expectativa da criança e de outro, em contraste, a descrição tocante da pobreza e de uma atmosfera pressurosa cujo símbolo mais importante era o vento, como a avisar uma desgraça iminente.
Como o menino do conto de Antonio Torres, aqui a criança fica tão absorvida pelo ineditismo da experiência, que não se concentra nas tarefas costumeiras e perde até a fome, como lemos na passagem:
– Tu parece que andas parvo, rapaz!
A mãe não podia compreender o que significava para ele receber uma prenda – estender a mão e ver nela, não a malga de caldo habitual, mas qualquer coisa de inesperado e gratuito, que fosse a irrealidade da riqueza na realidade duma pobreza conhecida de lés a lés. Por isso se arreliou tanto quando o viu, ao almoço, virar a cara aos carolos, e ao meio-dia comer apenas o rabo de uma sardinha. (TORGA, 1996, p.61)
O narrador preserva a compreensão parcial e gradativa da criança, como ocorre em Por um pé de feijão. O menino acompanha o desespero crescente da mãe com a demora do esposo, que fora à feira dos 23 (Feira de Natal), para de lá trazer o presente. A mãe parece farejar a desgraça, que se torna concreta com a notícia trágica que encerra o conto:
O coração deu-lhe um baque. Então o tio Adriano voltava sozinho?!
Pôs-se a ouvir, como um bicho aflito.
E daí a nada sabia que o pai fora morto num barulho, e que no sítio onde caíra com a facada lá ficara ao lado dum cavaquinho que lhe trazia. (TORGA, 1996, p.63)
A surpresa tão desejada deixa de ser o presente e torna-se a crua e irreversível fatalidade. Um história tocante que, como ocorre também no conto de Antonio Torres, fala de um sertão de alegrias efêmeras, de uma realidade que deixa marcada a retina do menino que vive uma experiência ainda pouco compreendida.
Há nas duas representações do sertão o confronto entre o deslumbramento da criança e o lance reverso do destino. Mas a coincidência não se resume à perspectiva narrativa ou ao registro de uma desilusão. Quanto às questões formais, podemos aproximar os dois contos no que toca ao uso de uma dicção sertaneja que inclui o tradicional recurso ao provérbio, a uma sintaxe mínima e a opção por uma linguagem disfêmica que evita atenuações.
Verificamos nos dois contos a representação de um sertão que amadurece precocemente a criança e caleja cedo o seu olhar no sofrimento circundante. O sertão é o seu lugar, o seu chão, sua matriz identitária, seja o da Bahia, seja o de Trás-os- Montes, um espaço que lança o leitor no centro de reflexões que transcendem as fronteiras locais. Um sertão, em ambos os contos, marcado pelo isolamento, pelas privações e por relações interpessoais regidas por uma ética própria, forjada em modelos ancestrais. É o sertão de Torres. É o sertão de Torga. Separados por um oceano, mas próximos pela força de uma ficção que aponta para aspectos universais da condição humana.
REFERÊNCIAS:
BOOTH, Wayne. A retórica da ficção. Tradução de Maria Tereza H. Guerreiro.
Lisboa: Arcáda, 1980.
DIAS, Márcio Roberto Soares. Da cidade ao mundo: notas sobre o lirismo urbano de Carlos Drummond de Andrade. Vitória da Conquista, BA: Edições UESB, 2006.
FONSECA, Aleilton. Escreviver: (Des)encontros da ficção com a biografia. In: BEDASEE, Raimunda. (Org.) A (auto)biografia / L’(auto)biographie. Edição bilíngue. Feira de Santana, BA: Universidade Estadual de Feira de Santana; Tours: Université François Rabelais, 2005. p.75-89.
FONSECA, Aleilton. Antônio Torres: o estilingue da memória. Disponível em <https://www.antoniotorres.com.br/vida&obra.htm> Acesso em 01.ago.2010.
SANTANA, Maria Helena Jacinto. Notícias do Paraíso: o povo rural nos contos de Miguel Torga. In: ACTAS DO COLÓQUIO COMEMORATIVO DO NASCIMENTO DE M. TORGA, (M. Fátima Marinho, org.), NEL – Studies in Literature, 8, Porto, FLUP / Munchen, Martin Meidenbauer, 2008, pp. 155-165.
SEIXAS, Cid. Os sonhos do sujeito e sua construção social. In: TORGA, Miguel. Contos da montanha. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,1996, p. 1-8.
TORGA, Miguel. Contos da montanha. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,1996. TORRES, Antonio. Meninos, eu conto. São Paulo: Record, 1999.