Uma geração uivando para a Lua

Capas de Um cão uivando para a Lua
Algumas capas de Um cão uivando para a Lua

Jornal do Commércio, Recife
Fernando Azevedo

Antônio Torres criou um cão danado, que agride com a sua dor toda uma geração que vive (ou sobrevive?) entre sonhos e desilusões neste imenso País tropical. O seu “Um Cão Uivando Para a Lua”, magro e vigoroso como um nordestino, rosna e morde com todos os seus dentes, afiados pelas escaramuças travadas na cidade grande, onde a antropofagia ainda é praticada, apesar de 473 anos de catecismo. O seu cão, ao contrário de certa espécie de tigre, é mal comportado, escavaca velhas feridas e fuça mágoas, arranhando em cada página o equilíbrio aparente com que vivemos a nossa vidinha pequeno-burguesa, tecida ainda de sonhos que não se enquadram na realidade. A sua novela não foi escrita solitariamente, toda uma geração assina esta obra, de uma forma ou de outra.

As vezes sádico, debochado, melancólico, trágico ou irônico o seu tom lembra uma memória em processo crítico, onde cada experiência é purgada, pesada e analisada, para compor um quadro que define bem o que poderíamos chamar de uma geração de transição. Afinal, esta geração já se aproxima de uma idade em que terá de prestar contas: assinalar as suas virtudes e relatar os seus vícios e pecados, para que se avalie com exatidão a sua presença histórica e existencial. Uma geração não respira impunemente. Faça o que fizer, sempre haverá um julgamento.

Mas, a novela de Torres não pretende caçar bruxas, julgar ou avaliar quem quer que seja: apenas descreve, às vezes até próximo da crueldade, um estado de vida de uma geração perdida e maldita por diversas razões revelando os seus sonhos, suas ambições, desencontro e quedas. Suas personagens vivem a época da Transamazônica, respiram o ar poluído da metrópole e assumem todos os cacetes e neuroses do nosso tempo. Elas vieram no nordeste, romperam com o cordão umbilical do universo rural e tornaram-se pessoas urbanas, apesar das lembranças nostálgicas e por vezes odiosas da roça e da pequena cidade, onde permanece um passado tão forte que carregam nos ombros e na memória. Torres esquematiza dois tipos de comportamentos cara e coroa de uma mesma moeda, através de suas personagens. “T” enfrenta a metrópole e a máquina com uma visão fatalista (ou terrivelmente cartesiana?): a máquina existe, é forte, monolítica e nada se poderá fazer, a não ser aderir, abdicar os nossos sonhos mal elaborados na adolescência. O sonho acabou, meninos. A vida é dura, devemos enfrentá-la com o que sobrou de nossas couraças ou… nos arrebentamos. No entanto, esse comportamento é epidêmico, aparente porque envolve contradições profundas. Na medida em que “T” sobe na vida, descobre a sua imensa dor, uma dor de quem foi violentado, prostituído, engravidado por uma máquina que cada vez exige mais em troca de magras emoções e algumas gratificações sociais o “status” não é capaz de apagar o desencanto de uma vida rotineira e vazia de significados. Também pode-se uivar dentro de Dodge Dart do ano ou silenciosamente em cima dos confortáveis tapetes Tabocow que cobrem os tacos dos apartamentos da classe média. “T” venceu na vida para a máquina, três hurras para ele. “Ao vencedor, uma camisa de força”. Os tempos mudaram. Na época machadiana, os vencedores comiam batatas e Freud ainda não tinha lançado as bases da psicanálise, a magia civilizada adotada pelo nosso mundo ocidental.

O contraponto de “T” é “A”, uma personagem que esculhamba a sua estrutura nos choques da guerra diária, e vai parar num sanatório , terra de ninguém e exílio voluntário de quem não suportou a antropofagia de todos os dias. Ali, em paz de trégua, “A” realiza uma viagem de retorno às suas experiências de vida num flashback que se transforma num terrível balanço crítico, que transpõe as porteiras do drama pessoal e individual para situar-se numa amarga e desesperada análise de toda uma geração, que descobre estar os valores nus e as intenções onde sempre estiveram: apenas no nível da intencionalidade, simples potencia, nunca ato realizado. A equação está montada e é simples, exigindo uma apreensão apenas didática, como numa lição. Ou aceita-se as regras do jogo, com todos os seus riscos, ou fica-se à margem. A lógica da máquina é implacável e fria, mas exprime uma verdade que se tem de olhar de frente. Ela força, na prática, a uma tomada de posição, aceitar as regras do jogo ou rejeitá-la (jogar ou não jogar, eis a questão), ambas gerando conseqüências, uma, a dor; outra, o vazio do nada. “A” termina a viagem em torno de sua própria dor, e aprende a lição. Quebra o isolamento e deixa o exílio, retornando à vida. Afinal a máquina, possui a força do magnetismo, atrai para o seu campo de força tudo o que gravita em sua órbita, porque é ele quem dá a própria existência ao homem, apesar de limitá-la dentro de fronteiras  bem demarcadas. Fora da máquina não há vida, e isso é óbvio. “A” resolveu a equação, bem ou mal, escolheu o caminho de volta, a dor nossa de cada dia.

Esta é a forte novela de estréia de Torres. Ele destilou toda a sua experiência de baiano que foi para a cidade grande, carregando atrás de si séculos de êxodo contínuo e gerações inteiras, enfrentando uma máquina que se alimenta de homens e sonhos. Como escritor, entrou no festim antropofágico com seus dentes afiados, mostrando as suas marcas e feridas antigas e recentes. Escreveu um cão raivoso, de  peito aperto, que uivou para a lua para lembrar à sua geração as suas dores, as nossas dores. É difícil ver esse cão uivar, com som tão humano e tão verdadeiro. Seu livro é um soco na cara, daqueles que fazem o mundo rodar em nossa volta ao normal, o equilíbrio é sempre restabelecido. Só que espanamos a nossa memória, revisamos as nossas experiências e afiamos os próprios dentes. No final das contas, como disse Faulkner e Torres transcreve como epígrafe de sua novela, “entre a dor e o nada, escolho a dor”.