Uivar é com os cães

Aguinaldo Silva

Terra em transe marcou, junto com as páginas finais de Quarup, o fim de uma fase na cultura brasileira. A partir daí, os gestos românticos deixariam de atrair até mesmo os nossos intelectuais, o que marcava o início de um processo terrível: o “virar um Portugal” de que falou Chico Buarque de Holanda, em “Opinião” no 2. A cultura passaria a trilhar um caminho cada vez mais desinteressado da vida, até chegar às caixinhas ocas e transparentes de acrílico nas artes plásticas; aos diálogos entrecortados e ininteligíveis do cinema; o ao delírio formal, ao jogo de palavras sem sentido a que se entregou a literatura.

No campo da literatura — o que nos interessa — a des­munhecada foi ainda maior: nossos jovens e aflitos escritores passaram a negar toda uma tradição realista, a chamar de acadêmicos os que ainda jogam com a realidade, e a despencar, ou para o fanatismo capenga, ou para a mais desenfreada vanguarda. Nos dois casos, uma preocupação que deve ter agradado o sistema: não dizer nada. Mascarar de tal forma as palavras que estas, afinal, acabem desprovidas de ­qualquer sentido. Nem mesmo usar o sentido “oficial”, o con­­­ve­niente à situação atual, e portanto já deformado, mas partir para o non sense do tipo Me segura que vou dar um troço (Wally Sailormoon, autor jovem) que mascara, principalmente, a covardia (seria bom lembrar aos nossos escritores a lição dos escritores portugueses: ao longo desse “virar Portugal” eles aprenderam a empunhar a palavra e a pairar acima da hipocrisia geral. Basta citar um romance: O delfim, de José Cardoso Pires).

Uma das primeiras missões de um honesto intelectual brasileiro, hoje, é dar às palavras seu verdadeiro sentido. “A vida de um honesto intelectual brasileiro, hoje”, é a motivação de Um cão uivando para a Lua, que, como Quarup, de Antônio Callado, vai mais além, até traçar todo um painel da vida brasileira, hoje, que oscila entre os PNBs fantásticos e a miséria que nenhum milagre consegue camuflar. A história de A., personagem central do livro, jornalista que se projetou na fase posterior a Terra em transe — quer dizer, aí pelos idos de 1967 — é a de boa parte dos nossos intelectuais de agora, imprensados entre os últimos estertores de um idealismo inútil e a soberba Tentação da Montanha, onde o diabo aparece disfarçado em torre de televisão, ou em promessa de muito dinheiro e alguma possibilidade criativa numa agência de publicidade. Os frequentes e chocantes contatos com a realidade tornam este intelectual doente, amargo (alcoólatra), levam-no a procurar o útero — ou o saco — do analista e até a “clínica em Botafogo”, mas já não o conduzem a aventuras como as do Padre Nando em Quarup. Ninguém quer mais morrer poeticamente, em câmera lenta, como Jardel Filho em Terra em transe, porque a realidade das caixinhas de acrílico é avassaladora demais, e porque, para esta geração que agora chega aos 30, e que passou a se interessar pelo processo cultural a partir de 1965, a vida foi sempre assim.

Um estreante seguro

Mesmo para os críticos — e os leitores — que se recusem a ver nesta obra a realidade que ela reflete, Um cão uivando para a Lua é irrepreensível. Embora o autor cite, a certa altura, “Pierrot Le Fou Godard” como seu “autor” predileto, sua novela atinge quase sempre um tom feliniano, isso com uma segurança pouco frequente em estreantes. Algumas seqüências — como a da viagem do repórter pela Transamazônica — atingem a maior altura de nossa ficção, o que nos permite cobrar de Antônio Torres a promessa de importantes obras futuras; esperamos que, após uma estréia tão feliz, ele não desça da montanha, como seu personagem, para assinar um promissor — e castrador — contrato com a TV.