1.
Relações transatlânticas
Em homenagem a Alexandre O’Neill, “um poeta bestial, pá!”, neto de irlandês e parente de Santo Antônio
(Do livro Sobre Pessoas – Editora Leitura, Belo Horizonte, 2007)
AUTO-RETRATO
O’Neill (Alexandre), moreno português,
Cabelo asa de corvo; da angústia da cara,
Nariguete que sobrepuja de través
A ferida desdenhosa e não cicatrizada.
Se a visagem de tal sujeito é o que vês
(omita-se o olho triste e a testa iluminada)
o retrato moral também tem os seus quês
(aqui uma frase censurada…)
No amor? No amor crê (ou não fosse ele O’Neill)
e tem a veleidade de o saber fazer
(pois amor não há feito) das maneiras mil
que são a somovente estátua do prazer.
Mas sofre de ternura, bebe demais e ri-se
Do que neste soneto sobre si mesmo disse…
Lisboa, 25 de junho de 1965.
Ontem desembarcou aqui um brasileiro sem passagem de volta. E com apenas 600 dólares no bolso. Ele tem 24 anos, nasceu na Bahia, mas veio de São Paulo. Viera na classe turística de um navio italiano bonitão, o Augustus — que fazia a linha Buenos Aires-Gênova — no qual embarcara no porto de Santos, ao anoitecer de um dia cinzento. Chegou a Lisboa nesse domingo, num fim de tarde ensolarado, oito dias depois.
À primeira vista, a cidade de casario senhorial, coberto de telhas, a admirar-se no espelho das águas do Tejo, era mesmo cheia de encanto e beleza, como a cantavam, nos dois lados do Atlântico. “Se o que vês não é apenas um monte de casas velhas, tu a mereces”, ele se disse. Bela porta de entrada à Europa! Mas haja expectativa, ansiedade, incerteza diante de seu novo mundo, dali por diante.
De mala à mão, desceu do navio, despachou-se na alfândega sem problemas, recebeu e leu um telegrama, assinado por um desconhecido, que lhe desejava boas vindas e se desculpava por não poder recepcioná-lo, em virtude de um compromisso de última hora, intransferível. Grata surpresa. Sentiu-se a adentrar um território hospitaleiro. E pegou um táxi, que o levou para uma pensão na Praceta João do Rio. Precisava ficar perto da Praça de Londres, onde havia um emprego à sua espera, numa agência de publicidade, garantido pelo próprio dono dela – o senhor Coelho -, numa carta que ele portava, e à qual respondera informando o mês e o dia em que chegaria, daí o telegrama que lhe entregaram, ao desembarcar.
Instalou-se na pensão, onde a mesa era farta e o quarto confortável. Respirou os ares da praceta frondosamente arborizada, mergulhou numa banheira de água quente e dormiu o sono dos viajantes. Hoje acordou cedo, bem dormido, mas ansioso para apresentar-se à empresa que, logo descobrirá, fica num belo endereço. Marinheiro de primeira viagem, ele se regozija pelo mar de almirante em que navega até agora. Aguardemos, porém, a sua primeira tormenta, logo ao chegar ao que julgava o seu porto seguro, e ser recebido por um gerente que, do alto da sua franqueza gerencial, disse-lhe, de cara, na lata, sem mais delongas, que ele, o brasileiro, não devia ter vindo. Sua mudança para Portugal havia sido um equívoco: “Pensávamos que o senhor fosse um desenhador e não redactor”.
Imagine o pânico. Os seus 600 dólares mal dariam para uma passagem de volta. Irredutível, o gerente esclarecia-lhe que Portugal não precisava importar redactores publicitários brasileiros, pois os tinha de sobra, a maioria romancistas e poetas famosos, como José Cardoso Pires e Alexandre O’Neill, já os havia lido?
Nada a fazer. Só lhe restava (a ele, o senhor gerente), desculpar-se pelo mal-entendido e… “Passar bem”.
O brasileiro não se deu por vencido: “Quer dizer que a assinatura do seu patrão não significa nada para o senhor?” A pergunta desestabilizou toda a convicção com que o até então empedernido gerente o despachava. Percebeu isso pelos seus visíveis sinais de hesitação, ao vê-lo pegar um lenço e passá-lo na testa, a dizer:
– Deixemos que ele próprio decida.
E telefonou para o senhor Coelho, que se encontrava em casa, a cuidar de assuntos pessoais, informou. O patrão não hesitou em honrar o compromisso assumido através de uma carta transatlântica. E pediu ao gerente para passar o telefone ao redactor brasileiro. Para lhe dar as boas-vindas, desta vez de viva voz. Ufa!
Começará amanhã. Portanto, hoje terá tempo para flanar pela cidade. Desceu e engraxou os sapatos em frente ao Café de Londres, enquanto se refazia do transe vivido nas primeiras horas do dia. Aquela situação embaraçosa poderia ter sido evitada, se o tal gerente, ao agir como um cão de guarda patronal, tivesse raciocinado com rapidez, e consultado o patrão, antes de atacá-lo (a ele, o recém-chegado), com todas as unhas e dentes. Que cara, quer dizer, gajo, de raciocínio lento! Seriam todos os portugueses assim, e cheios de má vontade com um brasileiro? Mas não. Pela diligência e simpatia do senhor Coelho não podia botá-los num mesmo saco.
Ficou um tempo observando os homens que iam e vinham pela calçada, todos muito velhos, tristes, cabisbaixos, pesadões, um passo hoje, outro anteontem, a dar voltas em torno de si mesmos, num círculo de desesperança. Como se carregassem nas costas e na alma o fardo de quatro décadas de totalitarismo – na era de Dom António de Oliveira Salazar -, três séculos de inquisições, dois mil anos de cristianismo. Parecia não haver nesta cidade uma só viv’alma da sua idade. Os jovens estavam na guerra na África ou haviam fugido Europa adentro. Perguntou-se o que tinha vindo fazer aqui. Daí a pouco perceberia que a viagem havia começado a valer a pena.
Foi assim:
No Café de Londres, ainda a remoer um resto de angústia, pelo impasse que o tal gerente criara, lembrou-se de que precisava telefonar para um certo Galveias Rodrigues, o dono da Telecine-Moro, a maior produtora de filmes publicitários de Portugal. O motivo da ligação era um presentinho que ele trazia do Brasil – um boizinho de barro do mestre Vitalino -, enviado por um diretor de arte de São Paulo chamado Laerte Agnelli, que havia trabalhado seis meses em Lisboa. Desenhador podia, claro!
Apressou-se em comprar ficha e se valer de um telefone público. Galveias Rodrigues o atendeu prontamente. Em menos de uma hora já estava em seu gabinete. E dele sendo levado a conhecer os estúdios de filmagem, sala de projeção, filmes produzidos, story-boards de comerciais em produção e, por fim, a ala dos criativos. Foi aí que o nome de Alexandre O’Neill lhe foi mencionado pela segunda vez, nessa manhã. Logo, quase que o conhecia, antes de a ele ser apresentado.
O poderoso Galveias Rodrigues despediu-se, deixando-o aos cuidados do seu próprio redactor, “um poeta bestial, pá”, que adorava o Brasil, sem nunca lá ter ido. Deu para notar isso logo à entrada da sua sala, que tinha uma das paredes decorada com crônicas de Rubem Braga, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, Vinícius de Moraes e Rachel de Queirós.
— Com que então és brasileiro! – ele exclamou. – Nasceste num país grande e por isso andas pelo mundo como se estivesses atravessando um quintal.
– E o que dizer dos portugueses, que nasceram num país pequeno e se meteram em quase todos os cantos do planeta?
– Ó pá! Agora me destes uma volta.
Ato contínuo, Alexandre O’Neill levou sua inesperada visita à parede, na qual colara também poemas de João Cabral de Melo Neto. Ao mostrá-los, disse ter sido o organizador da primeira antologia de João Cabral publicada pela Portugália Editora, em 1963. E que era amigo dele. Costumava visitá-lo em Sevilha, onde o poeta brasileiro da sua maior admiração diplomaciava, como cônsul do Brasil. Encerrando esse capítulo, comentou o rigor de João Cabral com as palavras, que lhe parecia obsessivo:
– Ele afia tanto a ponta do lápis que ainda vai acabar cortando os dedos.
Antes de partirem para almoçar, ele pegou o seu paletó, que estava pendurado nas costas de uma cadeira. Enquanto o vestia, surpreendeu o brasileiro com uma observação prosaica:
– É bonito este teu casaco.
– O teu também é bacana.
– Mas não tem o corte e o caimento deste teu.
– Foi feito sob medida, para a viagem. No entanto, não tem lá essas diferenças do teu. A não ser na cor.
– Queres trocar?
Então o brasileiro passou-lhe o seu paletó azul e vestiu um marrom. Os dois encaminharam-se para um espelho. E concordaram que a permuta havia caído bem em cada um. Além de selar o começo de uma amizade, que atravessaria os tempos. Foi na casa de Alexandre O’Neill que o brasileiro encontrou guarida, ao ficar desempregado em Lisboa – e por quatro meses! –, sendo assim recebido, à Rua da Saudade, 23:
– Não precisas de emprego, mas escrever. Vou te tratar a pão e água, para que escrevas.
– E por que achas que tenho que escrever.
– Porque um dia, logo ao chegares, recitastes para mim, de memória, trechos e mais trechos de Scott Fitzgerald. Então eu pensei: “Tenho que levar esse gajo a sério”.
Amigo
Mal nos conhecemos
Inauguramos a palavra “amigo”
“Amigo” é um sorriso
De boca em boca,
Um olhar bem limpo,
Uma casa, mesmo modesta, que se oferece,
Um coração pronto a pulsar
Na nossa mão!
“Amigo” (recordam-se, vocês aí,
Escrupulosos detritos?)
“Amigo” é o contrário de inimigo!
“Amigo” é o erro corrigido,
Não o erro perseguido, explorado,
É a verdade partilhada, praticada.
“Amigo” é a solidão derrotada!
“Amigo” é uma grande tarefa,
Um trabalho sem fim,
Um espaço útil, um tempo fértil,
“Amigo” vai ser, é já uma grande festa!
Claro está que aquele brasileiro ainda não havia lido isto. E que, até o dia 25 de junho de 1965, não fazia a menor idéia de quem era Alexandre Manuel Vahia de Castro O’Neill de Bulhões – por um lado, neto de um irlandês, e, por outro, parente de Santo Antônio, que também era um Bulhões. Portanto, não sabia que ele, aos 40 anos, era um dos maiores nomes das letras portuguesas do século 20, às quais legou páginas memoráveis, sobretudo em versos, como os de “Um adeus português”, “A pluma caprichosa”, “O poema pouco original do medo”, “O país relativo”, “Portugal”.
Sua obra poética está toda reunida num só volume, de mais de 500 páginas. Publicou livros de crônicas, com títulos curiosos, como “As horas já de números vestidas” e “Uma coisa em forma de assim”. Amou muitas mulheres (o brasileiro desta história conheceu algumas delas: Noêmia, a mãe de seu filho Xaninha, Pâmela e Teresa, com quem teve outro filho). Mudou de endereço uma vez, para a Rua da Escola Politécnica, 48. Teve um programa de TV, coluna em jornal, e muitos patrões, até não achar mais quem lhe desse emprego. Entre os altos e baixos, viveu à rasca, ou seja, com problemas de dinheiro. Viajou ao Brasil em 1983, quando conheceu o Rio, São Paulo, Salvador e Fortaleza, fazendo parte de uma delegação de escritores, que incluía José Saramago, Lídia Jorge, José Cardoso Pires e Lobo Antunes. (Ao embarcar de volta a Lisboa, no Galeão, disse: – Quem chega por este aeroporto pela primeira vez, fica a achar que está a chegar num dos países mais ricos do mundo.).
Alexandre O’Neill bebeu e fumou demais. Sofreu o primeiro enfarto aos 52 anos. Morreu no dia 21 de agosto de 1986, aos 62.
Em 6 de julho de 82, ele havia publicado no Jornal de Letras, de Lisboa, a seguinte crônica:
“Quando se está com pane cardíaca o universo míngua e um sujeito ‘desliga’. Passa para a categoria de ‘bom doente’ para ver se salva o canastro, mas não tem propriamente medo. Só tem medo que se enganem nos remédios e lhe enfiem os que são para algum vizinho… De resto, nada mais, a não ser que, quando se volta para casa, se sente tudo fora do sítio e não se acredita que o canastro volte à normalidade. Nem com um jornal na mão se pode andar. Nem se pode caminhar contra o vento. Nem… Nem… Nem… Até que um dia um sujeito se sente de repente melhor que novo e recomeça a fazer asneiras…”
*
Lisboa, 6 de novembro de 1995.
“Numa noite escura da alma são sempre três horas da manhã”.
Alexandre O’Neill: esta frase aí é de Scott Fitzgerald (lembra?) e serve à perfeição para revestir as horas já de números vestidas, sem que eu consiga pegar no sono. Vem um motorista me buscar aqui no hotel, às sete, para me levar ao aeroporto, onde devo embarcar para Roma, se sobreviver até lá. Que coisa estranha: rodei, rodei, rodei para, afinal, vir morrer em Lisboa. Estou com medo. E achando que desta noite não escapo. Não adianta mudar de posição na cama, deitar de lado até o ombro doer, esperando que o sono chegue. Já fui ao banheiro várias vezes, me olhei no espelho, pra ver se há algum sinal de morte na minha cara, que parece normal. Já bebi potes de água, e nada do sono baixar. É estranho mesmo. Muito estranho. Para piorar as coisas, vêm-me à memória uns versos da sua lavra:
Eu estava bom pra morrer
nesse dia.
Não tinha fome nem sede,
nem alarme ou agonia.
Comigo me desavenho nas horas que vão se vestindo de branco.
Estou no Hotel Tivoli, na Avenida da Liberdade. Ainda há pouco cheguei à janela e vi as árvores negras, peladas, desvestidas de folhas, como em todos os outonos de Lisboa. E pensei: “Provavelmente um dia eu já tenha vivido aqui. Mas isso faz muito tempo. Foi no tempo de Alexandre O’Neill”. O que escreveu:
Subamos e desçamos a Avenida,
Enquanto esperamos por uma outra
(ou pela outra) vida.
Estou aqui como jurado do Prêmio Camões, ora veja. E vim com o romancista Márcio Souza e o poeta Affonso Romano de Sant’Anna. O prêmio saiu para José Saramago, aquele que me deu uma carona da casa do nosso amigo Fernando Santos para a sua, numa noite de fevereiro de 1984, em que fui seu hóspede (outra vez!), por cinco dias.
Àquela altura, você estava passando a pão e água, eu me recordo. A ponto de catar tostões para uma refeição por dia, como me contou. E remoia-se em atribulações pelo fracasso de um casamento; um filho com problemas (parece que veio a se suicidar); nenhuma perspectiva de trabalho. Ainda assim, você se contorcia em dúvidas: se devia ou não aceitar uma bolsa mensal do Instituto Português do Livro, oferecida pelo presidente daquela instituição, António Alçada Baptista, seu amigo de todas as horas, até a última. (Foi ele quem me telefonou um dia, para me dizer, desolado, que você havia entrado em coma).
– Não achas que essa bolsa é uma espécie de esmola? – você me perguntou, num daqueles cinco dias em que me oferecia a sua casa, pela última vez.
– Aceite-a como um direito. Autoral. Como um pagamento do que os editores lhe devem. E isso está vindo em boa hora, não é? – foi o que lhe respondi, incitando-o a não vacilar mais, para não continuar se martirizando com a falta de dinheiro, até para o pão de cada dia.
Fui encontrá-lo no Instituto, depois dos seus acertos burocráticos com o Alçada Baptista, conforme o combinado. Quando cheguei lá, vocês dois conversavam animadamente. Você sorria. Gostei de vê-lo de novo ânimo, de uma hora para outra. O Alçada levou-me a um passeio entre ruas de livros. Estava orgulhoso do trabalho que vinha fazendo ali. E eu dele, pelo bem que lhe fizera. A você, Alexandre O’Neill, que por um momento voltava a sorrir.
Dali fomos almoçar com o bom Irineu Garcia, o brasileiro dos discos de poesia, amigo de toda a gente do meio literário nos dois lados do Atlântico, e que já havia se tornado um lisboeta. No entanto, confessou-nos estar em dúvida se deveria ou não voltar para o Brasil. Não teve muito tempo para se decidir. Acabou sendo encontrado sem vida, pelo Cardoso Pires, num dia em que marcara um almoço com ele.
Ainda há pouco o José Carlos de Vasconcelos, o do JL, em que você tanto colaborou, veio buscar o Affonso Romano de Sant’Anna e eu para um jantar de lordes. No caminho para o restaurante, o carro em que nos levava cruzou a Rua da Escola Politécnica. Olhei à direita tentando localizar o prédio onde você morava, mas não deu para vê-lo. Depois a jornalista brasileira Norma Couri me levou ao teatro, para assistirmos a uma peça de Hélder Costa.
Findo o espetáculo, o Hélder me deu uma carona para o Procópio, onde a atriz (e que atriz!) Maria do Céu Guerra nos aguardava. E, como sempre, para cobrar as minhas memórias de você, que são as do meu tempo de Lisboa, de Portugal, àquele tempo definido pelo Fernando Santos como “um doce país fascista”, então a atravessar uma das ditaduras mais longevas do mundo. E é esse o país que está ao fundo de seus poemas.
Agora, Lisboa já não parece a cidade de homens dos pés redondos, a dar voltas em torno de si mesmos, tal qual parecia ao meu primeiro olhar, naquela manhã em que engraxei os sapatos na calçada do Café de Londres, no dia 25 de junho de 1965. Agora a cidade está chiquezinha, engraçadinha, internetadazinha, globalizadazinha. Agora, sim, é que ela desfila no “luxo blindado dos seus automóveis”. Importados, pois, pois! Percebe-se uma nova classe nesse desfile. Resta saber de onde veio, o que faz e para aonde vai.
Hoje à tarde parei diante de uma vitrine aqui ao lado do hotel, atraído por um paletó bacanérrimo. Recordei-me do nosso primeiro encontro, na Telecine-Moro. Entrei na loja e perguntei o preço. 500 dólares! Ora, viva: Lisboa não era a cidade mais barata da Europa? Pensei: esse não vou poder permutar com o O’Neill. Desta vez fico-lhe devendo um novo paletó.
No Procópio, a Maria do Céu estava cercada de amigos, como o Raul Solnado, o comediante lendário. De repente me chamam ao telefone. Era a Leonor Xavier, que amanhã estará lançando um livro muito bem editado sobre Maria Barroso, a senhora Mário Soares. Falando nisso, me contaram uma história… engraçada? Vá lá. Consta por aqui que, quando você agonizava na cama de um hospital, disse que queria a presença, ao pé dela, do presidente da República, que não era outro senão Mário Soares. Ao saber disso, ele foi visitá-lo. Mas deixou o hospital sem entender nada. Você o teria enxotado, aos berros: “Tirem esse homem daqui! Quem o chamou? Não quero falar com ele!”
Feita essa digressão (para você rir aí um pouquinho de si mesmo), volto ao telefonema da Leonor Xavier: “Tu aqui e o O’Neill cá já não está”. Desligou e veio correndo, não sei se para me ver ou ao Raul Solnado, com quem andava estremecida, mas pelo que pude perceber acabaram voltando às boas.
Seja como for, gostei de revê-la. A última vez que a havia visto foi numa festa no Rio de Janeiro, patrocinada por ela, há muitos anos — para José Saramago! O que acaba de levar o Prêmio Camões. A propósito, estranhei um cidadão que me interpelou no Procópio. Ele havia me visto na televisão, a dizer bem do premiado. Disse-me, na lata, ao jeito lusitano sem peias, que não entendia o fascínio brasileiro pelo Saramago.
– Esse gajo é um chatarrudo, um antipático, que vive a dizer mal de Portugal — e continuou desatando uma data de impropérios nada glorificantes a respeito do velho Zé, que está famoso como um corno, e com toda pinta de Prêmio Nobel. Mas aqui lhe sovam. Imagine os estilhaços verbais que sobraram para mim, por ter participado do júri e dito na televisão que o prêmio era justo etc. Chiça! Tudo como dantes. Dizer mal de toda a gente é uma tradição portuguesa, com certeza.
Também diziam muito mal de você, eu me lembro. Quando você fazia um programa na televisão e tinha uma coluna no Diário de Lisboa. Deviam pensar que você estava de tripa forra, com dinheiro saindo pelo ladrão. Sem terem antes o cuidado de verificar o seu saldo bancário. A vida é assim. Ou será uma coisa em forma de assim?
Se sobreviver a esta madrugada que avança com as horas cada vez mais se vestindo de números, escreverei umas linhas a seu respeito, nem que seja apenas para dizer que você foi um amigo como poucos.
E não foi?
*
Rio de Janeiro, 6 de fevereiro de 2007.
Pois, pois. Cá estou, sobrevivendo às minhas próprias “mós de baixo”. E condenado ao seu auto-de-fé:
Folha de terra ou papel,
Tudo é viver, escrever…
2.
Eurico em Alagoinhas.
Uma temporada entre luz e sombra
(No centenário de nascimento do poeta Eurico Alves Boaventura – 1909 – 2009)
Todos os crepúsculos agora estão em mim…
Almas estranguladas passeiam com a minha alma de confidências,
pelas escuras alamedas do passado…
Porque vens, agora, sombra amiga,
quando esta longa noite do tempo veio para esquecer,
porque vens aflorar no meu caminho a sinfonia do meu tormento?
Perdi sonhos, perdi desejos infecundos, perdi de ouvir a música do tempo.
É como se fosse a vida que imitasse a arte. Assim pensa o autor destas linhas num dia do mês de março de 2009, ao ler um poema que Eurico Alves Boaventura escreveu em 1951. Trata-se do belo e melancólico Rondó das sombras consoladoras, cujo trecho acima ilustra à perfeição a memória de uma tarde de 1970, quando o poeta recebeu em sua casa, numa ensolarada e solitária rua que se chamava Manuel Bandeira, uma alma estrangulada pelo excesso de horas presa à poltrona de um ônibus comum, do Rio de Janeiro a Feira de Santana.
Foi uma breve visita. E de surpresa. Nada além de uma pausa a meio do caminho para outros nortes, e para acorçoar-se ao sabor de um café e dois dedos de prosa, que resultariam num passeio de confidências pela longa noite do tempo em alamedas escuras do passado, e que, revisitadas agora, desembocam na página de Luz em agosto na qual William Faulkner escreveu: É o conhecimento – e não a dor – que faz você se lembrar de centenas de ruas selvagens e ermas.
Erma, sim. Selvagem, não – poderia ter concluído o recém-chegado à ruazinha àquela hora deserta, e ao ser recebido com a fidalguia peculiar a um homem de letras citadino de reconhecível herança aristocrática rural. E Juiz de Direito, ainda por cima, embora já a viver os crepúsculos da aposentadoria na sossegada Rua Manuel Bandeira, a quem o autor da Estrela da vida inteira devia a homenagem, por razões que a esta altura, imagina-se, poeta algum ignora, pelo menos na Bahia.
Recorda-se aqui a entrada da casa por uma varanda lateral, onde havia uma cadeira de balanço. Acrescente-se ao impacto visual das singelezas à chegada, portas e janelas azuis, e paredes brancas, tudo a trazer para a arquitetura urbana do século XX uma evocação da era das mansões coloniais, se é que não se delira nessa recordação.
De certeza é que àquela hora o sol amenizava-se, já em queda para o poente. E que um vento morno regia a música do tempo, numa orquestra a farfalhar em memorável concerto a sua Antífona para depois de amanhã: O vento marca o tempo, o tempo que ouço uivando/ nas marchas dos moços sem rumo.
Elegantemente trajado, como de hábito, o doutor Eurico Alves Boaventura encaminhou o seu visitante a uma mesa senhorial ao centro da sala, na qual reinava o silêncio, quebrado apenas quando surgiu uma senhora (parente sua, talvez) para cumprir o sagrado ritual da hospitalidade sertaneja, ao portar uma bandeja com um bule e duas xícaras de café. O que faltava ali? Os convivas de outra sala há onze anos atrás, numa cidade chamada Alagoinhas, onde o anfitrião era o mesmo dessa tarde que parecia mais propícia a uma soneca do que a recepções não programadas.
Mas não. O protagonista desta história era, antes de tudo, um ser gregário, um mestre na arte do convívio. Recebeu a inesperada visita de braços abertos, e de forma tão calorosa que preenchia o vazio das ausências, a começar pela dos familiares, àquela hora cuidando de seus afazeres fora das instâncias domésticas. E de que cuidava ele, agora, à sombra dos seus sessenta e um anos? Dos retoques finais num livro de mais de mil páginas datilografadas, que lhe havia consumido, em pesquisas e elaboração, a maior parte dos anos já vividos. Com o calhamaço à mesa, de repente a sala povoou-se dos vaqueiros que traçaram a rota primitiva dos destinos da Colônia que Portugal criou neste lado do Atlântico, na saga que levaria à civilização do pastoreio. Ler em voz alta era para ele uma praxe que vinha há muito do tempo, certamente bem anterior às tertúlias na biblioteca de sua casa de Alagoinhas, em noites em que cintilava uma nova constelação da poesia brasileira, que em sua voz descia redonda em ouvidos até então mais afinados com a lírica d’antanho, que os anos não traziam mais, numa cidade que ainda se movia ao ritmo dos boleros, embora já a ensaiar os primeiros passos de Rock’n roll.
Se foi um privilégio privar dos saraus na intimidade do seu lar alagoinhense, a partir do que seus convivas não mais leriam poesia da mesma maneira, imagine o que dizer da honra de ser brindado com as primeiras páginas de uma obra inédita, cuja envergadura sociológica e histórica transcendia a dimensão do volume e o esforço ciclópico do autor para realizá-la. Mas de repente ele parou. E não por cansaço ou para fazer algum comentário. Com uma mão sobre a página (devia ser a quinta ou a sexta), cuja leitura interrompera, e, abaixando ainda mais os olhos, que se apertavam por trás dos óculos, disse, em tom sussurrante, como se falasse para si mesmo:
– Quando eu me lembro…
Perturbado pelos sinais de desgosto que a repentina lembrança estampava num rosto àquele instante visivelmente sulcado de mágoas, o eterno ouvinte do poeta, ensaísta etc. e mestre informal Eurico Alves Boaventura eclipsou-se entre a luz externa, porta e janelas afora, e a sombra interna em uma alma martirizada do tempo. Restava saber que martírio era esse.
– Você sabe o que aconteceu comigo?
A cena congela aqui, no retrospecto que se tenta fazer agora. Porque a memória só alcança até aquela pergunta, diante da qual o seu ouvinte não se sentiu uma sombra consoladora, mas uma presença incômoda, desassossegadora, que trazia para aquela sala a lembrança da cidade onde o que acontecera fora abominável demais para ter consolo ou remissão, embora não saiba, agora, se já chegara àquela mesa, naquela casa de Feira de Santana, e naquela tarde de 1970, sabendo o que se passara com o Meritíssimo Juiz de Direito da Comarca de Alagoinhas no terrífico ano de 1964, na sequência das arbitrariedades militares, cuja dolorosa lembrança o tornava (a ele, o Juiz) refém do estribilho do rondó que escrevera vinte e três anos antes: Todos os crepúsculos agora estão em mim… Pois agora, e por ironia do destino, ele devia estar sentindo deveras a dor que poderia então ter sido apenas um fingimento.
O que foi mesmo que lhe aconteceu?
– Sim, eu me lembro – diz Valdemar Paraguassu, que há muitos anos vive em Salvador, mas em 1964 morava em Alagoinhas, e a poucos passos da casa do doutor Eurico, como o chamam todos daquela cidade que o conheceram. – Fomos presos num mesmo dia. Assim que me soltaram, fui embora, para assumir um emprego no Banco do Brasil em outro lugar. Por isso não soube o que aconteceu com ele depois da sua prisão. O que me lembro é do clima de terror daqueles dias, quando um comerciante encrenqueiro de lá passou a acusar de subversivo todo aquele com quem ele tinha alguma contrariedade, ou simplesmente a quem não simpatizava. Foram tantas as prisões por denúncias desse tipo, que elas viraram uma esculhambação, a ponto de o comando local das repressões ter de exigir que só fossem feitas por escrito. E com firma reconhecida!
O que dizer disso agora? Que teria sido cômico se não fosse trágico?
No caso específico do doutor Eurico, porém, a maledicência fora engendrada por um Oficial de Justiça. É o que recorda Aristóteles Freitas Costa, que àquela época era um dos alunos que mais se destacava no Ginásio de Alagoinhas, e que, como outros estudantes intelectualmente inquietos, tinha em doutor Eurico um mentor extra-classe. Costumava visita-lo no Fórum, às vezes acompanhando-o a caminho de casa, parando numa esquina e outra, em conversações que podiam ultrapassar uma boa meia hora. Formado em Direito, o velho Arica hoje mora no bairro de Icaraí, em Niterói, RJ. O que lembrou mais, ao telefone:
– Ele me aconselhava a não parar de estudar. E me indicava autores, me incentivava a ler muito. E bem. Uma vez me emprestou um livro de poesias traduzido por Manuel Bandeira, que não devolvi, porque não o vi mais, depois da sua prisão.
– E por que você não o viu mais?
– Eu trabalhava numa sorveteria do meu pai e um dia vi o policial que prendeu o doutor Eurico parado na porta, me encarando. Deduzindo que ele estava de olho em mim, fui me esconder numa fazenda que a gente tinha, e por lá fiquei um tempo, esperando a poeira baixar. Quando voltei, o doutor Eurico já não morava mais na cidade. Os comentários eram de que ele havia sido transferido para Vitória da Conquista.
Foi o que aconteceu, confirma Juraci Dórea em seu ensaio Eurico Alves e a Feira de Santana. Está no livro A poesia de Eurico Alves – Imagens da cidade e do sertão, organizado por Rita Olivieri-Godet, e publicado pela Fundação Cultural do Estado da Bahia em 1999. Amigo de Eurico de longa data, o artista plástico, arquiteto e também poeta Juraci Dórea esclarece: “[…] com exceção dos períodos de férias, Eurico pouco viveu em Feira de Santana. Aos 14 anos de idade (1923) ele já se encontrava em Salvador, matriculado no Ginásio N. S. da Vitória […] Em 1934, recém-formado, estava em Feira de Santana, porém logo no ano seguinte transferiu-se para Capivari, hoje Macajuba”… E daí em diante: Tucano, Riachão de Jacuipe, Poções, Canavieiras, Alagoinhas, Vitória da Conquista “e, finalmente, Salvador”. O que significa que o doutor Eurico Alves Boaventura só voltou a viver na capital já perto de aposentar-se, e isto pouco ou nada influiria mais em seu destino literário.
Voltemos à sua temporada de Alagoinhas (1959-1964), não necessariamente Une Saison en Enfer, mas que só não se tornou uma página em branco na história de Eurico graças às incansáveis buscas biobibliográficas de Juraci Dórea e à memória de Maria Eugênia Boaventura, que era bem pequena naquele tempo, mas ainda se lembra que a casa ficava à Rua Carlos Gomes, 63, com a biblioteca na sala de visitas, e que era frequentada pela professora Normândia Azi Lacerda, o advogado Murilo Cavalcanti, um funcionário da Justiça do Trabalho chamado Giése (José Giése da Cruz, primo do autor destas linhas), o alfaiate que fazia os blazers do seu sempre elegante pai, que por sua vez fundou o Lyon’s Clube da cidade, tendo sido o seu primeiro presidente. Maria Eugênia recorda-se ainda que o doutor Eurico foi professor do Ginásio de Alagoinhas, onde dava aulas pautadas pela pluralidade de conhecimentos.
Entre as pessoas lembradas pela professora Maria Eugênia, há uma que poderia emergir das sombras reivindicando este epitáfio:
Tropeço, dentro da noite em cadáveres de sonhos…
Porém, mãos de suicidas,
As dolorosas e augustas mãos dos suicidas,
Vêem ensombrar a minha fronte para eu sonhar…
Todos os crepúsculos agora estão em mim…
No contexto destas memórias, esses versos evocam o trágico fim de um
dos convivas das tertúlias à Rua Carlos Gomes, 63, Alagoinhas, Bahia.
Nascido num distrito de Inhambupe chamado Junco (hoje a cidade de Sátiro
Dias), onde fora batizado e registrado com um sobrenome de origem alemã
como nome próprio, aposto ao de José, Giése cometeu o tresloucado gesto
na casa do bispo de Juazeiro da Bahia, aí pelo ano de 1971, deixando
uma carta cujo conteúdo o bispo jamais revelaria, por considerá-lo um
segredo de confissão. Para que não se avente premonições do poeta,
lembremos que o Rondó das sombras consoladoras é de 1951, e, também, que
Eurico e Giése só vieram a se conhecer em 1959. Mas como evitar a
tentação de dizer outra vez que foi a vida que imitou a arte?
1959-2009: Memórias, Sonhos…
Assim se passaram cinquenta anos: envoltos em sombras [que] abafaram os passos das distâncias/ para que não perturbassem o sono do silêncio…
– Atirador 22, sentido! Marche, marche! Do Tiro de Guerra 110 ao Ginásio de Alagoinhas, e de lá ao Fórum ou à Rua Carlos Gomes, 63 – em 1959!
Há um fabuloso tempo a ser reencontrado nessa marcha de volta.
Chegou a hora de fazer-se a luz sobre a sombra dolorosa e inexpressiva como um sonho morto que até aqui pairava na sua memória, porque você, por mais que se esforçasse, não conseguia enxergar com nitidez todo o impacto causado pela chegada do juiz-poeta Eurico Alves Boaventura àquela cidade das luzes verdes nas fachadas, em um ano de sonhos dourados de uma juventude que ele mesmo faria crer-se promissora. “Memória! Junta na sala do cérebro…” Sobre o que vocês conversavam? Nas tertúlias que promovia, ele lia seus próprios poemas? E que poetas lidos ou recomendados por ele foram verdadeiras revelações? Alguns deles chegaram a ser tão decisivos para sua formação literária, quanto os ficcionistas – Jorge Amado e Graciliano Ramos, por exemplo -, que o professor Carloman Carlos Borges levou você a conhecer, dois anos antes? Enfim, qual foi o seu real legado?
Resposta: só agora, e graças à memória do caro colega do Ginásio de Alagoinhas Aristóteles Freitas Costa, me dou conta de quem pode ter me levado a ler um poema de Federico Garcia Lorca traduzido por Manuel Bandeira, e que começa assim:
Cantam os meninos
na noite quieta;
arroio claro,
fonte serena.
OS MENINOS:
Que tem teu divino
coração em festa?
EU:
Um dobrar de sinos
perdido na névoa.
A lembrança desses versos, muitos anos depois de os haver lido em algum lugar do passado, e certamente num livro emprestado pelo doutor Eurico, levou-me a escrever o romance Balada da infância perdida, cuja primeira edição é de 1986, e que foi traduzido para o inglês com o melódico título Blues for a lost childhood. E agora também me lembro do meu segundo dia de trabalho como aprendiz de repórter policial no Jornal da Bahia, ao desembarcar de Alagoinhas em dezembro de 1959. Como no dia anterior eu havia fracassado na cobertura do movimento do porto de Salvador, onde não fui capaz de farejar uma manchete espetacular – um tiroteio cinematográfico entre policiais e contrabandistas -, me empurraram para o Necrotério Nina Rodrigues. Dali não iria voltar sem assunto. Logo à entrada via-se, estirado num estrado, o cadáver de um rapaz que se matara.
Corri para o jornal e comecei a matéria com um poema de Godofredo
Filho que falava do absurdo de se morrer aos 20 anos, entregando-a em
seguida, e com a ansiedade imaginável, ao chefe de reportagem, o poeta
João Carlos Teixeira Gomes, que a passou ao chefe da reportagem
policial, o também poeta Jeová de Carvalho, que por sua vez mostrou-a ao
editor-chefe, o ficcionista Ariovaldo Matos que, de dedo em riste,
disse ao aprendiz de repórter que ele estava ali para fazer jornalismo e
não literatura, que poesia era coisa de… Bom, felizmente não perdi o
emprego. Mas o que importa aqui é que com certeza foi Eurico quem me
levou a ler Godofredo Filho. E Cassiano Ricardo. E Jorge de Lima – com
quem se correspondia – de cuja obra hoje se diz que “permanece robusta e
poderosa como um penhasco, na solidão incomparável do gênio”.
… Reflexões
Não dá para imaginar que Eurico um dia tenha tido pretensões de ser posto pela posteridade nas mesmas alturas de seus mais festejados (e fraternos) pares Manuel Bandeira e Jorge de Lima. Ele não era, como Gilberto Freyre – que reconhecia como grande escritor – “uma pessoa feita para se ver no espelho”. E sua obra continua “restrita a um pequeno círculo de amigos e especialistas”, como constata Juraci Dórea, mesmo em se tratando de “uma figura de proa nos primórdios do modernismo na Bahia”, no dizer do consagrado poeta Florisvaldo Mattos.
Tiremo-lo das sombras. Para que este não seja um tributo a cem anos de solidão.