Inícios de contos memoráveis

1. Imagine a leitora que está no ano de 1813, na igreja do Carmo, ouvindo uma daquelas boas festas antigas, que eram todo o recreio público e toda a arte musical. Sabem o que é uma missa cantada daqueles anos remotos. Não lhe chamo a atenção para os padres e os sacristães, nem para o sermão, nem para os olhos das moças cariocas, que já eram bonitos nesse tempo, nem para as mantilhas das senhoras graves, os calções, as cabeleiras, as safenas, as luzes, os incensos, nada. Não falo sequer da orquestra, que é excelente; limito-me a mostrar-lhes uma cabeça branca, a cabeça desse velho que rege a orquestra, com alma e devoção. (Machado de Assis, em Cantiga de Esponsais).

2. Todos aqueles homens e mulheres ali na platéia sombria parecem apagados habitantes dum submundo, criaturas sem voz nem movimento, prisioneiros de algum perverso sortilégio. Centenas de olhos estão fitos na zona luminosa do palco. A luz circular do refletor envolve o pianista e o piano, que neste instante formam um só corpo, um monstro todo feito de nervos sonoros. (Érico Veríssimo, em As mãos de meu filho).

3. … era uma viagem inventada no feliz. (Guimarães Rosa, em As margens da alegria).

4. A fronteira crepuscular entre o sono e a vigília era, neste momento, romana: fontes salpicando e ruas estreitas com arco. A dourada e pródiga cidade de flores e pedra polida pelos anos. Às vezes, em sua semiconsciência, estava outra vez em Paris, ou entre escombros de guerra alemães, ou esquiando na suíça e num hotel entre a neve. Algumas vezes, também, era um barbeiro da Geórgia, certa madrugada em casa. Era Roma esta manhã, na região sem tempo dos sonhos. (Carson McCullers/ O Transeunte).

5. Horizontalmente desperto entre as dimensões do universo, praticando sorrisos de alegria, sátira, o fim de tudo, de Roma e também de Babilônia, dentes trincados, um enorme calor vulcânico, as ruas de Paris, as planícies de Jericó, muito deslizar como de réptil distraído, uma exposição de aquarelas, o mar e o peixe com olhos, sinfonia, uma mesa num canto do Torre Eiffel, jazz no teatro da Ópera, um despertador e o sapateado da condenação, conversas com uma árvore, o rio Nilo, de Cadillac coupé até Kansas, o roncar de Dostoievski, um som sombrio.

6. Este mundo, a face de alguém que existiu, a forma sem o peso, pranto sobre a neve, a branca música, uma flor ampliada ao duplo do tamanho do universo, nuvens negras, o olhar fixo da pantera enjaulada, espaços sem morte, Mr. Eliot de mangas arregaçadas torrando pão, Flaubert e Guy de Maupassant, uma rima silenciosa de sentido primitivo, Finlândia, matemática altamente polida e untuosa como uma cebola verde para o dente, Jerusalém, o caminho do paradoxo. […] Ó fugaz minuto de vida: acabou, o mundo está de novo presente.

7. Imagine uma manhã no fim de novembro. A chegada de uma manhã de inverno há mais de vinte anos. Pense na cozinha de um velho casarão numa cidade do interior. A peça principal é um grande fogão preto; mas há também uma ampla mesa redonda e uma lareira com duas cadeiras de balanço em frente. Exatamente hoje a lareira começou o seu rugido sazonal. (Truman Capote/ Uma recordação de Natal).

8. Começa-se com um indivíduo e, antes que se dê conta disso, descobre-se que se criou um tipo; começa-se com um tipo e descobre-se que não se criou coisa nenhuma. E isto porque somos todos uns pássaros bizarros, mais estranhos ainda por trás de nossa aparência do que desejamos que alguém saiba, ou do que nós próprios sabemos. Quando ouço um homem proclamar-se “um tipo mediano, honesto, aberto”, fico com a certeza de que tem qualquer anormalidade concreta e talvez terrível, que resolveu esconder – e seus protestos de que é mediano e honesto e aberto são a maneira de recordar a si próprio a sua conveniência. Não há tipos, nem generalizações. “Há um moço rico e esta é a história dele.” (Scott Fitzgerald/ O moço rico).

9. Aqui, um território vazio, espaços, um pouco mais que nada. Ou muito, não se sabe. Mas não há ninguém, é certo. Uma cobra, talvez, insinuando-se pelas pedras e pela pouca vegetação. Mas o que é uma cobra quando não há nenhum homem por perto? Ela pode apenas cravar seus dentes numa folha, de onde escorre um líquido leitoso. Do alto desta folha, um inseto alça voo, solta zumbidos, talvez de medo da cobra. Mas o que são zumbidos se não há ninguém para escutá-los? São nada. Ou tudo. Talvez não se possa separá-los do silêncio a seu redor. E o que é também o silêncio se não existem ouvidos? Perguntem, por exemplo, a esses arbustos. Mas arbustos não respondem. E como poderiam responder? Com o silêncio, lógico, ou um imperceptível bater de suas folhas. Mas onde, como, foi feita essa divisão entre som e silêncio, se não com os ouvidos? (Sérgio Sant’Anna, em Conto (não conto).