Ruy Espinheira Filho
Um livro feito com talento, indignação, humor e ternura. A editora o classifica como História do Brasil. Sim, há nele muito de História (assim, com H maiúsculo), estudo, pesquisa, mas tambÉm muito de histórias, de relatos da tradição, assim como daquilo que faz o autor advertir com um presumivelmente. Na verdade, muito do que repetimos hoje como fato histórico, ao menos em nosso País, merece ser antecedido desta advertência.
Mesmo não fazendo, neste livro, ficção, o baiano Antônio Torres tempera tudo, por assim dizer, com seu talento de ficcionista, de narrador vibrante, caloroso, longe da frieza comum nos autores acadêmicos. Aliás, na primeira frase deste texto eu me referi a — alÉm de talento — indignação, humor e ternura. Porque É isto: Antônio Torres não se põe distante, neutro, nessa história de índios e brancos, heróis e canalhas, inocências e sinistras astúcias. Pelo contrário: ele participa. Com indignação, pois os fatos da colonização suscitam com frequência este sentimento; com humor, embora às vezes repassado de amargura, pois tambÉm houve momentos de riso, sobretudo diante do ridículo e da estupidez do fanatismo dos europeus; e com ternura — uma imensa ternura pelos índios, pelos negros escravizados, pela terra e pelos bichos daquele admirável mundo novo, que o velho mundo vinha submeter, a ferro e fogo, a seus interesses.
Nossa “memória” foi trabalhada, por historiadores ligados às classes dominantes, para que tivÉssemos uma visão parcial dos (presumivelmente…) acontecimentos. Assim, JosÉ de Anchieta, que fazia o trabalho sujo do logro, enganando os índios para preparar o terreno para os portugueses, virou entre nós uma espÉcie de santo (se não me engano, há atÉ uma campanha para beatificá-lo, ou atÉ transformá-lo em imagem de igreja), assim como o Manuel da Nóbrega, encarregado dos mesmos engodos. Anchieta, aliás, tinha orgasmos (espirituais, admitamos…) com a violência lusitana, como mostra este trecho transcrito pelo autor: “Quem poderá contar os gestos heróicos do chefe à frente dos soldados, na imensa mata! Cento e sessenta as aldeias incendiadas, mil casas arruinadas pela chama devoradora, assolando os campos com suas riquezas, passado tudo a fio da espada!” Os portugueses, conta Antônio Torres, comemoraram a vitória cortando as cabeças dos cadáveres e enfiando-as em estacas. Uma autêntica aula de civilização àqueles bárbaros canibais. Em suma, com a “memória” artificial que criaram em nós, e continuam reforçando, temos apenas uma visão grosseira da nossa história. E todos os nossos heróis são brancos — alguns deles não passando de assassinos, ladrões, farsantes internacionais e prodigiosas mediocridades. Exatamente como certos poderosos de hoje. Quanto à grande e ao heroísmo de índios e negros, nada, ou quase nada a dizer. Tanto naqueles anos 500 quanto nestes 2000.
No meio de tanto ufanismo pelo aniversário do descobrimento, de tanto orgulho pelas excelência da “colonização”, Meu Querido Canibal nos lava a alma. Porque Antônio Torres escreve com emoção — e sem ilusões. Ele sabe que foi como foi — e que as coisas não mudaram. Os negros, liberados após longa escravidão, continuam marginalizados. Os índios, dos grandes Cunhambebe e Aimberê, entre outros grandes nomes, prosseguem experimentando a vasta generosidade dos caciques brancos — como o mundo inteiro testemunhou por ocasião das recentes “comemorações” em Porto Seguro e adjacências. Para maior glória da civilização, como diria um JosÉ de Anchieta. Presumivelmente, É claro. Ruy Espinheira Filho É poeta, ficcionista, ensaísta e professor do Instituto de Letras da UFBA.