Por Jorge de Souza Araújo, doutor em letras pela UFRJ e prof. da Universidade Estadual de Feira de Santana, BA.*
Designer da neurose urbana, atuando ao mesmo tempo como um sismógrafo e um enxadrista das repercussões emocionais e psicológicas dos indivíduos submetidos à bateria dos fenômenos sociais na contemporaneidade das cidades grandes, Antônio Torres é reconhecidamente um romancista do depoimento visceral, sincero e honesto sobre a condição humana. Sua narrativa depõe e reproduz além do texto, ampliando a sentença exata do jogo do bicho, onde vale o escrito.
A inequívoca fragrância de colagens autobiográficas (ou, antes, de impressões e reminiscências tingidas de agudezas sobre fatos, acontecimentos e pessoas) na obra de Torres se inicia com Um cão uivando para a lua (1972), título, aliás, que reconstitui, de forma pânica, um dos mais expressivos versos do árcade português João Xavier de Matos, pouco conhecido inclusive por seus compatriotas. O romance de estréia encena o trajeto agonístico de um jornalista ético na estreita sociedade dos grandes conglomerados de comunicação na fechada época da ditadura militar no Brasil.
Nesse universo complexo, o percurso do herói é o da busca desesperada de interlocução com a consciência pública para relatar os frutos e derivações do transe por que passara toda uma geração nos episódios culminantes do rabo-de-foguete histórico pós AI-5 e recrudescimento do regime a partir de 1968. O período e o poder baniram dos meios políticos e sociais qualquer possibilidade de reação, em meio à voga propagandística das realizações patrióticas em tempo de booms, pontes Rio-Niterói, Transamazônicas, Itaipus etc. O ritmo do discurso narrativo de Um cão uivando para a lua é de desespero latente explodindo as comportas da violência agregadora das repressões, acumuladas com o desaparecimento físico de muitos e as barreiras explícitas ao exercício de determinadas profissões.
Nesse embate de antagonismos entre a resistência e a alienação, a epígrafe de Faulkner — “Entre a dor e o nada eu escolho a dor” — avulta como mote pretextual para a desenvoltura do texto, que escorre a água do relato com a fluidez dolorosa de quem escorre o sangue e o pus das exasperações. O interior humano com suas mais intrincadas teias de complexidades psicológicas reativas ao mundo exterior, de que é reflexo e conseqüência, anima o feixe emocional do romance. As personas não têm identificação (ao menos no sentido da convenção onomástica) e são nomeadas por suas iniciais. A sonegação do explícito apenas dissimula não um recato esquemático, mas um voluntário e progressivo movimento de expiação e contemplação do indivíduo deformado pelas agressivas e hostis injunções de uma verdadeira central de anulamentos da personalidade individual e coletiva.
Um cão uivando para a lua atua, assim, depondo sobre uma escala de valores que se desmoraliza, valores derrogados ante a subserviência e pusilanimidade de uns, a delação e servidão voluntária de outros, as hostes antípodas entre a empulhação e a busca caótica da verdade e de um sentido para a existência. A. e T. representam o duplo investimento expressionista do herói em sua derivária e inquieta investigação ontológica, recorrendo ao álcool e às drogas, ao êxodo presumível e às fugas programadas, vistos como manobras diversionistas para escapar ao aniquilamento projetado por um invisível e todopoderoso Sistema. A perplexidade e o aturdimento não salvam ou curam o herói de suas encruzilhadas e o resultado fica entre o desbunde e o retorno entregue e impotente à rodaviva do que procurava escamotear.
O romance de Antônio Torres tem o impacto de dolorosas revelações não recomendadas a cardíacos. Não trata a denúncia pela denúncia alcoviteira de intangíveis proselitismos. Antes descarna o indivíduo solitário no mais recluso depoimento das vísceras morais, comovendo pela expressão verdadeira do testemunho. O cão uiva sozinho, mas sua linguagem renovadora e atenta devolve ao leitor a sensação de partilha das epifanias definitivas. O cão uiva buscando eco dentre os que se disponham a semelhante mergulho na épica (e ética) estóica de outros seres verdadeiros em igual sintonia. O que emerge da narrativa é sua impressionante carga de intensidade confessional, expressa num discurso desconcertante, de que são exemplos ilustrativos algumas imagens colhidas aleatoriamente da voz narrativa em primeira pessoa:
Minha memória é uma cova funda, onde enterrei todos os meus mortos.
Minha cabeça é uma montanha esburacada, por onde escoam todos os detritos do mundo.
Meu coração não bate, apanha.
E os meus pés estão sempre tropeçando.
Cit., 101)
E é como trôpego e hesitante que o ex-sofisticado repórter vitorioso em São Paulo irá reaprender o ofício de reexperimentar embates com o contingente. Entre o feijão e o sonho, debatendo-se embora e reaparelhado pela oportunidade que dá a si mesmo, o herói perplexo fará ecoar seu protesto mudo.
Em Os homens dos pés redondos (1973) a narrativa tripartite abarca (e dissolve) o indivíduo em três esquizofrênicas personalidades correspondentes às três seções (ou Livros) do enredo romanesco. A técnica inovadora não se constitui apenas em técnica, ousa redividir o herói em três perspectivas dinâmicas e atemporais, permanecendo o indivíduo em instâncias e quadrantes diferenciados pela intensidade das ações que sofre e em que pontifica. A memória pessoal se intensifica e se amplia em Os homens dos pés redondos. O relato alterna o passado em flashs de reminiscências proveitosas cotejadas com a dureza de um presente competitivo e cruel, que provoca deslocamento, embriaguez e náusea, sono profundo e pesadelos apavorantes. Manoel de Jesus, filho reprimido de pai sacerdote católico, é o herói que vive a promiscuidade entre irmãos dormindo numa mesma cama na miséria do subúrbio. Os planos do real e do delírio não têm uma fronteira nítida, de sorte que se confundem e confundem o leitor na sua apreensão do real no estético.
A própria narrativa, conquanto densa e com forte carga de inconsciente dramático, tem sua trama determinada pela aparência de caos discursivo misturado ao caos instalado na vida de indivíduos emparedados. A máscara de dor e impotência ante um sistema de opressão faz todos os indivíduos parecerem um único, fortalecendo o dualismo impactante das identidades individuais e dissolvendo-se num coletivo de angústias. Discurso e personagens em círculo lembram um beco sem saída, com as inerentes ansiedades de todos os becos sem saída. A linha de pânico seguida na composição narrativa de Antônio Torres exibe o universo existencialista de um Camus menos preocupado com questões ontológicas e metafísicas e mais inquieto ante o contingente. Daí o existencialismo ancorado mais no político que no filosófico, mais expressionista e patético — circunstancialmente afetado por problemas materiais concretos — que especulativo sobre os dramas imanentes.
Em estado permanente de tensão e ansiedade, a narrativa de Os homens dos pés redondos descreve cortes cinematográficos, com instantâneos sobre fatos e personagens, de forma abrupta ou programática. Os conflitos e dramas se passam numa intangível Ibéria (recurso semelhante ao percorrido por Gonzaga nas Cartas chilenas para melhor refletir o caos) e as personagens mais atuantes (Manoel Soares de Jesus, publicitário, pai de 5 filhos, vivendo de miséria e opróbrios, o escritor Adelino Alves, sua mulher Lena, o instável Emílio, o inominado Estrangeiro etc.) são simulacros do perfil de asfixia na ditadura militar no Brasil dos anos 70. Por isso a voz narrativa percorre a primeira pessoa de cada uma delas e Ibéria assume alegoria da fala nacional obesa e preconceituosa, prostituta penetrada por um Estranho a quem se entrega prazerosamente.
A despeito do esforço de distanciamento, o Estrangeiro é apresentado como oriundo de um país onde um monarca gordo andava com bolsos atulhados de frangos e um outro, seu filho, não passava de Casanova gaiato e promíscuo que não contraíra uma única doença venérea. Antônio Torres tangencia aqui o nouveau roman com anotações atemporais e a-espaciais e com a pulverização de uma temática antes atomizada por sucessivas crispações, onde a memória desempenha um papel fundamental e o relato se distribui entre o emergente, o cósmico e o provinciano, com direito a reminiscências da infância interiorana. O contingente apronta sustos e o ufanismo disfarça as neuras, escondido nas mensagens cretinas dos climas festeiros.
Por fim, o Estrangeiro assume seu lugar de origem: o Junco, onde uma gente estranha, em condições precaríssimas, vive cantando para não perder o juízo (Cit., 136). Em seu burgo, o nativo Estrangeiro se despersonaliza na alienação amorfa e bisonha de um dissolvente amargurado que se refugia no álcool e no sexo inconseqüentes.
Com Essa terra (1976) Antônio Torres inicia o núcleo referencial de qualidade superior em sua novelística. Conquanto o romance evidencie a primeira e direta menção à personagem Totonhim, podemos antes desentranhá-la, por citação indireta e lateral, nos discursos anteriores. A obra de Torres, aliás, desenvolve um denso e cíclico percurso de retorno do autor a si mesmo e à sua mais marcante geografia sentimental e humana, a épica e lírica paisagem do Junco, uma Yoknopatawa especial na nebulosa memória do narrador, que declina o verbo afetivo de um espaço modesto no mapa emocional do sertão da Bahia. Ao contrário do que supõe o próprio Antônio Torres, em carta ao primo José Giése da Cruz (no anteprólogo do romance Essa terra), de que o Junco não ocupa um espaço decente no mapa do Mundo, interpõem-no o conceito de geografia física e a rica moção postulada por Oscar Wilde, que dizia não reconhecer legitimidade num mapa-múndi que excluísse a Utopia.
Pois Antônio Torres, com Essa terra, inscreve definitivamente o Junco num legítimo e renovado globo terrestre. Seu terceiro romance é marco original a partir do qual a geografia literária baiana ganha contornos de novos signos, situados no Recôncavo Norte, na região capitaneada por Alagoinhas, matéria descritiva de um sertão mais amplo. Pela própria aferição autoral, Essa terra assinalaria uma autêntica viagem de volta à aldeia, às referências mais enriquecedoras e fecundantes da inscrição existencial humana. Escrita e temática se incumbem do risco amarronzado sobre a terra arada. A cunha seletiva do narrador incursiona pelo épos, pela lira, pelo drama e testemunho, mas também pela sátira mordaz, assim traduzindo o famigerado Produto Nacional Bruto: gente se alimentando de farinha de telha, sopa de farrapos e carne de rato.
Isso explica a obsessão autoral em dissecar o Brasil doente, o país verdadeiro amortizado pelas empulhações simplificadoras e mortificantes. O Junco é símile metonímico, anti-paradigmático, dessa noção de deserto e o romance Essa terra é invocativo dessas diferenças, recuperando, mediante caráter ficcional, o documento transfigurado paradoxalmente. A teia de interlocuções do discurso textual não oblitera, mas alarga o conceito do real. A razão e os diálogos do romance convalidam e invectivam à reflexão e à consciência crítica a propósito da forma como nos debruçamos sobre a realidade social brasileira.
Por conta dessa realidade, de suas repercussões ou dos descaminhos dela conseqüentes, o texto induz a pensar no Advento bíblico, na culpa consciente, deliberada e do inconsciente individual ou coletivo, culpa absorvível desde o êxodo, o fascínio abstrato da redenção na cidade grande, o nicho paulistano como edênico de transformações. E o insucesso, a noção de fracasso, o amargurado retorno, tudo, no fundo, dirigido pelos desequilíbrios nacionais de natureza econômica e social. As mudanças traumáticas operadas no Junco catapultam outros sofrimentos, mesmo aqueles a princípio sinalizados como progresso — o Banco, a tevê, a circulação das idéias, as novidades urbanas, a moda etc. A ira do doido Alcino reverbera os velhos anátemas desde os referenciais sertanejos mais emblemáticos, Antonio Conselheiro e Canudos.
O Apocalipse ganha então revestimentos de coerência no discurso alusivo, reforçado tragicamente com o suicídio de Nelo. Delírio, culpa, expiação, punição exemplar seguem um encadeamento lógico na narrativa, que expõe os conflitos decisivos para qualquer tomada de decisão por parte de Totonhim mesmo em face da diáspora familiar entre os conceitos redentoristas exteriores da mãe e o desejo do pai em permanecer no solo sagrado, visto como curador da integração familiar. O telurismo da roça é antagônico da dispersão citadina. A todos os contextos de exclusão o narrador-protagonista reage pela incorporação da culpa, purgativa do excesso mítico e da antevisão profética a ela associados. As lembranças podem até ser aleatórias, menos suas causas e conseqüências no repertório memorial do narrador. Fatos presentes (mesmo os acidentais) podem deflagrar reminiscências graves e dolorosas, pois se relacionam ao evento mais constrangedor: a morte de Nelo por enforcamento. Os cismas familiares como que se dissolvem ante a dimensão trágica do desaparecimento do Irmão. O esforço de compreender leva o narrador à auto-gnose e ao entendimento de suas referências mais profundas (a cosmogonia do lugar de onde provêm as dissensões familiares, a ambivalência de sentimentos), como se houvesse uma estreita relação de causa/efeito entre o indivíduo e seu espaço nativo.
Desde aí as fantasias são circulares, deixando ou não aflorar impropriedades comportamentais na cidade grande (a embriaguez, a dubiedade moral, a instabilidade de afetos), dentre as quais ganham relevo o pêndulo e a alteridade do amor e do ódio à terra de seu nascimento, origem de seus conflitos. Totonhim é o germe (em flash-back) sobre o qual se projetam os protagonistas narradores dos romances anteriores de Antônio Torres, coincidentemente designados A. e T. em Um cão uivando para a lua e De Jesus, o Estrangeiro e Alves em Os homens dos pés redondos. Em todos esses relatos o indivíduo se desintegra, fragmentário e exilado, desfigurado identitariamente e à cata de um porto salvador onde ancorar a esperança de continuidade.
Essa terra não é tão somente uma história de ou sobre migrantes desterrados para São Paulo, onde e de onde acorrem e decorrem misérias e grandezas materiais e éticas. O tema do retorno também não se circunscreve apenas aos ensaios de esperança frustrada e impossibilidades. Isso talvez seja dizer pouco. Nelo volta de São Paulo e faz a retrospectiva de seus passos desde a ida triunfalista ao retorno desalentado. O filho próspero, no entanto, voltaria ao Junco para encontrar a morte, enforcando-se em casa, para surpresa e mistério gerais. O porque do gesto conflagra decifradores desconstruindo idealizações redentoras. O herói mitificado não passaria de um sobrevivente brutalizado por uma existência atormentada entre carências materiais e afetivas, abandonado pela mulher e pelos filhos paulistanos.
Aos olhos do narrador Totonhim passa o filtro das sensações de frustração, impotência, despeito e desolação. O irmão-herói descalçara os sapatos (de cromo alemão) da prosperidade para realçar (e recalcar) as alpercatas de couro cru, pisando o pó das intempéries sertanejas, mantendo mortas as chamas de qualquer projeto de redenção familiar e o eco das ruínas do sonho nos circunstantes. O retorno de Nelo — sem nenhum aviso — revela a instabilidade de sua condição social e psíquica, contrastando com as gerais expectativas. Ao narrador Totonhim são apresentados os primeiros sintomas de desequilíbrio dos retornados de São Paulo, flagrando no irmão Nelo as alucinações e delírios de um homem infeliz, alienado e só, descompensado por sucessivas e brutais perdas, anulando-se no lugar de suas origens, atando as pontas de um ciclo de culpas e auto-punição. Impotente em prover imagens de heroísmo referencial conciliadoras à decadência de seus projetos, Nelo escolhe o Junco para por termo à dor.
Ao narrador (e irmão mais novo, Totonhim) só resta o retrospecto de primitivas lembranças traumáticas, relacionadas ao cosmo familiar e do Junco, ermo longínquo e próximo onde a venda de Pedro Infante representa o abrigo de todas as queixas. A linguagem dos afetos será pulverizada em um fundo de ressentimentos, amarguras e intolerâncias.
Carta ao bispo (1979), de certa forma, seqüencia Essa terra. No quarto romance, Antônio Torres cumula de testemunho retrospectivo e prospectivo o êxodo do indivíduo ao recôndito de si mesmo. É romance-sonata, cujo primeiro movimento ordena uma lógica cruel: recolhido a uma casa do bispado, isolado com suas amarguras, Gil decide morrer ingerindo veneno. Antes escreve (ou vai escrevendo enquanto aguarda o desenlace) sua confessional Carta ao bispo, refazendo o itinerário de suas perplexidades, começando pela primeira comunhão, ao jogo de futebol, à descoberta das primícias sexuais, daí cortando para o Gil adulto, a atividade política, a Prefeitura, o idealismo, o comício (onde repete falas do comediógrafo Gil Vicente e do pacifista Martin Luther King).
O perfil do protagonista-narrador é do típico político do interior acossado por intrigas e ameaças de morte física ou simbólica (acusado de safado, ladrão, comunista e homossexual) e dividido entre o idealismo ideológico e o oportunismo espoliador. As imagens do remetente epistolar se misturam, passado e presente se entrechocando, a conversa encabulada, cheia de atalhos. O depoimento suicidário corta qualquer fio de esperança na redenção humanista. A Carta ao bispo punge e choca porque revela o quanto somos emparedados nos macro ou micro cosmos de angústias, de nada valendo obstinações nas geografias sem sentido das cidades sem alma, condenando ao esforço inútil a comunidade de sobrevivência dos párias, fustigados pela hostilidade do meio. Como Essa terra, Carta ao bispo é o romance dos sem-lugar, dos deslocados, destituídos do mais remoto ânimo, seja na infinita São Paulo ou no deserto do Junco.
Gil não contemporiza: quem come miséria não caga nem merda (Cit., 39); Deus me deu a pátria, o Diabo me deu a angústia (Cit., 40). A escritura romanesca investe em inovações formais, buscando, pela fragmentação da linguagem, a representação psicológica de desintegração moral e social. O jorro de palavras desconexas, substantivando e expondo Gil como o herói atomizado, expele-o de um eu primordial, remoldando desertos em amargurados despistamentos. Por isso as conclusões de imobilismo reativo na Carta ao bispo, onde Gil se despede da verticalidade do existir: Os pecados mortais são só três, Dom Luís: nascer, crescer e viver (Cit., 47). As instâncias dramáticas repassam, como num filme, as imagens constituintes do desespero do herói, sua raiva impotente contra pessoas, instituições e cidades como Feira de Santana e Alagoinhas, as muitas idas-e-vindas São Paulo/Bahia, o amor frustrado por Marília, os delírios da embriaguez do álcool e das sensações imprimidas no espírito contrafeito.
O fundo humanista determina o final do romance. O bispo chega a tempo de levar Gil ao hospital e a sugestão e expectativa de salvar o idealista no atormentado suicida.
Confrontos e entrechoques entre o Brasil arcaico e o Brasil moderno permanecem singularizando a obra de Antônio Torres em Adeus, velho (1986). Levando em conta uma estruturação molecular no conjunto de desintegrações do cosmo familiar e de referência aos núcleos sociais do interior brasileiro face à fragmentação identitária, o novo romance de Torres contextualiza em Salvador a reduzida apetência da sociedade humana dilacerada por imperativos econômicos e sociológicos.
Adeus, velho obedece às dolorosas circunstâncias do descompasso que acompanha todo processo de mobilidade social do interior à metrópole, fotografando graus e degraus de dispersão e ruptura da personalidade, síndrome que acompanha cataclismos pessoais e coletivos acarretando os mais bruscos atavios da organização sócio-psicológica. A protagonista (pela primeira vez na obra de Torres) é uma Virinha representando emblematicamente a luta da mulher na sociedade corrompida por valores forjados pela competição estigmatizada como natural num mundo zoomorfizado, conquanto pobreza, miséria e degradação sejam males coletivos co-naturais ao nordeste brasileiro.
Como o passado não se apaga e o presente só delega desencanto, cansaço e deserção, quanto mais conformistas se revelarem, mais soterrados serão os indivíduos em seus mecanismos de imobilidade. Entre degradar-se e desiludir-se, Virinha parece aproximar-se perigosamente da convivência com os dois verbos mais perversos na trajetória dos que se empenham no esforço da alteridade. O Adeus, velho do título sugere invocação de despedida, mas também o despedaçamento, renúncia excludente a um tempo olvidado e substituído por outro que, não sendo novo, muito tem de ausente por inércia.
A odisséia de Virinha (nome civil: Maria Elvira) começa com o galanteio fácil, logro, sedução e abandono por um motorista de caminhão, à vista da cidade distante. Os passos da lograda Virinha atordoam o relato com a vertigem da rápida sucessividade dos fatos. Acusada de assassinar o sedutor, aos 40 anos, Virinha é presa em Salvador e vira notícia preconceitualmente repercutida no Junco, sobretudo pelos requintes do crime hediondo que cortara ao motorista o pescoço, a língua e o membro viril. O irmão caçula de Virinha, Mirinho (Zulmiro, ou Zu) realiza a versão dramática do resgate da família repartida em surdos ressentimentos e atavismos de herança.
O velho a quem se declina o Adeus é o velho Godofredo, pai de 17 filhos perdidos na solidão dos desertos metropolitanos e diaspóricos. A família se desintegra como um álbum que, aos poucos, vai desbotando. Os filhos, premidos pelo sonho da redenção individual, arribam na estrada de chão, tangidos pelo visionário umbral de liberdade ao meio cada vez mais mortiço do Junco. Nesse sentido, Adeus, velho é uma extensão do ciclo de êxodos e expatriamentos dos sertanejos para outros destinos, ciclo aberto por Antônio Torres com Essa terra. Os diálogos dos irmãos tangenciam a aspereza, sem a boa lembrança de qualquer intimidade ou aos lugares de suas referências. O encontro por ocasião da morte e funeral do velho Godofredo só aprofunda a litigância dos irmãos, aqueles filhos da verdadeira vereda tropical, que liga o mundo ao nada e vice-versa (Cit., 138).
O Adeus ao velho é emblemático das variadas orfandades. Como pausa às dissensões por direitos de herança, Virinha e Mirinho passeiam suas desilusões pela praça e ruas da aldeia. Mais uma vez Antônio Torres se presentifica no repertório de imagens do passado recuperadas pela reminiscência psicológica. O epílogo do romance alterna constrangimentos e asceses, revelando um narrador atento às simuosidades da alma em todos os quadrantes e fisionomias morais deflagradas pela eterna incógnita da condição humana.
No exemplo aproximado de Um dia na vida de Ivan Denissovitch, de Alexander Soljenitzin, a Balada da infância perdida (1986) repassa num só dia — ou noite, de insônia, mal-estar e bebedeira — um quarto de século da experiência psicológica de um ser mutante no esforço de permanecer ele mesmo dentre os muitos que intenta. Neste seu sexto romance, Antônio Torres permanece reescrevendo os delíquios do migrante miticamente retornado ao chão da origem geográfica, lúdica, psicológica e existencial, conjugando as tensões do impossível retorno ao passado remoto e harmonizando o presente aos influxos revitalizadores das expressões afetivas e memoriais.
Nessa Balada da infância perdida, ao império da sociologia e psicologia dinamizadas por conflitos interiores das personagens, o narrador acumula 25 anos de reflexões sobre o destino dos indivíduos num país combalido em suas forças vitais, vítima de sucessivos equívocos institucionais. Ou seja: à introdução psicológica — que flagra o contínuo das instabilidades pessoais evidenciadas pelo narrador e suas diferentes personas e vozes — o romancista adere e cola fatos políticos da História recente (golpe militar de 1964 e seus desdobramentos), comprometendo ainda mais a mecânica explosiva das emoções humanas.
A memória afetiva do Junco acompanha, mais uma vez, o fabulário narrativo de Antônio Torres, subsidiando a obra romanesca de temas e linguagem convergentes. Um mesmo e polívoco Totonhim, ainda que derive a persona para outros nomes (A., T., Estrangeiro, De Jesus, Nelo, Gil, Mirinho, Virinha et alli), muito mais evoca a infância simples e residual. Balada da infância perdida arrebata a memória coletiva de paisagens, seres, lugares, mitos e personalidades de todo interiorano do nordeste brasileiro, cumprindo um avatar sertanejo desequilibrado em suas bases emocionais de permanência nômade, espécie de Ahasverus do sertão das secas, cujas asperezas emergem do solo e da ecologia agreste para a alma crestada das pessoas.
Tanto neste quanto nos outros romances de igual signo, a presença de um velho pai, de origens rurais e aversão à cidade, é fenômeno circular. Progenitor de muitos filhos (12, 15, 17) e em conflito discreto ou escancarado com a figura da Mãe, o velho percorre as páginas memoriais da obra de Antônio Torres com ou sem a caducidade dos estigmas, em contexto problemático, mas nunca indiferente. A aversão às cidades é justificada em função do seqüestro e fascínio que exercem na sociologia afetiva, roubando-lhe os filhos, minando a família e provocando-lhe a diáspora de contornos entre o drama, a tragédia e o trauma. Tentando compreendê-lo em sua mudez, o narrador é sempre exclamativo na referência ao velho, com a carga evidente de sentimentalidade devocionária. Por isso o romance sugere constantes fusões do épico com a lírica e recorrentes serão a sonoridade e o eco dessa Balada da infância perdida.
Antônio Torres talvez seja o mais proustiano dos narradores contemporâneos da Bahia. Seu texto advoga recuerdos dos pathos, repondo em pé a memória viva, telúrica e sinestésica, embalado pelo cheiro de alecrim. O delírio alcoólico é pretexto para reproduzir cenas memoráveis, algumas de teor cômico insuperável de harmonia. O humor corresponde ao sarcasmo dos desiludidos, sobretudo dos que viviam imprensados entre regimes a fórceps. Mas o forte mesmo — que mais comove, tanto quanto o conhaque de Drummond no famoso poema — é o rescaldo da memória do narrador escavando lembranças do pai cantando aboios, dos irmãos desterrados no mundo sem endereço, do retorno ao coração selvagem das sondagens íntimas. Por isso o narrador se interroga inquieto entre o peso do passado e as incertezas do futuro, enquanto convive com o terror de suas alucinações e a presença ininterrupta de seus mortos (o primo Calunga, a tia Madalena, a mãe, os irmãos anjinhos no caixão azul feito pelo próprio pai). Encurralado no tédio da cidade grande, o narrador-protagonista bebe sua solidão e se embriaga de angústia.
Romance expressionista como os anteriores, o pathos anima os cordéis da Balada da infância perdida, presente também no espírito parodístico dos hinos e poemas declamados na escola. O ritmo de vertigem cinge o relato ao círculo intermitente das elucubrações afetivas.
Um táxi para Viena d’Áustria (1991) é o texto mais cosmopolita dentre os romances de Antônio Torres. De humor esquivo e pouco à vontade, reflete os desencontros do indivíduo na cidade grande frente à náusea e o descaminho, a desorientação de quem procura rumor num tempo disperso. A narrativa adensa o pânico desse desnorteamento fixando-se, de forma fragmentária, num conjunto de impressões, cortes e colagens expressionistas da complexidade sem pistas de decifração ante o nervo exposto da simultaneidade dos traumas urbanos.
O discurso se afasta da linha até aqui seguida. O cenário não é mais a Bahia (citada direta ou indiretamente nas ações) e sim o Rio de Janeiro, e mesmo assim um Rio de Janeiro sem uma incisiva noção de identidade e permanência, acossada por assaltos e outros golpes na conformada passividade urbana. As reações percorrem a afirmação da beleza do jazz na meia-noite e a ironia sarcástica das tribos na ambiência urbana. O protagonista se ressente de um pouco à vontade comum também ao narrador e à própria narrativa.
E por que Viena? Porque a capital da Áustria é também a capital da música e lá as pessoas dançam nas ruas, lugar de liberdade de movimentos e das sensações estéticas. O romance resvala no gênero policial sofisticado pela substância do merchandáising da úrbis. O impressionismo das descrições recebe a unção do registro das sensações ciclotímicas da cidade que dispersa fluências identitárias, cidade cósmica, planetária, que pode ser qualquer uma em sua fúria de desconfortos. Por isso que Viena d’Áustria é a pátria regularmente dos refugos, dos manobristas do diversionismo espiritual.
O protagonista-narrador mata um amigo, mas o ato e o crime são praticados a-serviço do próprio assassinado, à semelhança de uma eutanásia em rito de eliminação da dor de um doente terminal. Sem dúvida, é o relato mais sombrio na obra densa de significados afetivos de Antônio Torres. Documenta a insatisfação pessoal contaminando a deserção coletiva de um universo em profundo desencanto, expandido a determinadas categorias profissionais que não vislumbram valores em seu ofício. O exemplo ilustrativo é a publicidade, onde as relações são corroídas pela competição estupidificante e o império extorsivo dos mercados. O protagonista é assassino piedoso, banalizando sua crueldade como os exilados urbanos sufocando-se de inação.
O cachorro e o lobo (1997) assinala o retorno de Antônio Torres ao território cosmogônico da memória de sua infância, o Junco, sua Aracataca ainda não desmitificada, apesar dos arranhados signos de uma modernidade suspeitosa (televisores, antenas parabólicas, telefones, supermercado).
Há duas décadas na São Paulo dos iludidos, o Narrador refaz brevemente um retorno sempre problemático à sua terra, em visita ao pai octogenário, que vive fora da cidade deserta de glórias e convivendo com seus fantasmas, medos e mortos, enquanto cumpre um rito de sol, roça, animais e paisagem rústica. Pela linguagem, cujo arcabouço é também persona decisiva no traçado do discurso, com O cachorro e o lobo Torres retoma o fio proustiano das tensões do eterno retorno às raízes míticas pendentes do lugar para a inteireza existencial. O indivíduo-narrador vive o espectro das lembranças e dos entrecruzamentos afetivo e emocional das histórias que a todos implicam e enredam, inclusive os leitores, mesmo aqueles que não tenham o sertão como origem. O universo dessas recordações sugere uma condição especial da náusea existencialista, do convívio com a memória agônica dos desterrados cíclicos.
O contra-senso da era moderna também chega ao Junco, interferindo nas relações e conflitos e determinando os rumos de uma herança de afetos no romance que reinveste na emoção e na ironia, filtrados pelo sinete da forma. Matéria de memória, O cachorro e o lobo retoma explicitamente Essa terra, mas ultrapassa o clamor do migrante pela iconografia da canção popular (cujas letras se interpõem quase como entidades no contexto do romance), retratando, por extensão diaspórica do Junco, uma Feira de Santana sem glamour, meio do tempo, meio do mundo, corredor polonês no rumo obrigatório da distante São Paulo.
Retirado numa casinha simples de uns restos da outrora próspera propriedade rural, o Pai, o Velho do Narrador, aos 80 anos de idade, vive isolado do mundo, mantendo conversas excludentes com os mortos, em longos serões, tão logo chegue a noite. E já que a obra de Antônio Torres se desenvolve em ritmo e rito cinematográficos, a alusão temática que a ela parece melhor caber é à filmografia de Frank Capra. Na forma literária, a melhor lembrança que a leitura de O cachorro e o lobo associa é ao conjunto Pedro Páramo/O planalto em chamas, do mexicano Juan Rulfo. Texto permeado de metáforas involuntárias, também sem competidor é o lírico desdobramento da recordação da primeira namorada de Totonhim, a professora Inesita.
O cachorro do título é referência afetiva de tratamento a Totonhim, narrador e filho caçula do lobo solitário, o velho pai recolhido em seu ensimesmamento de octogenário recluso no sítio, conversando à noite com os mortos e, durante o dia, com as galinhas e demais bichos da roça. Sem dúvida, é este o mais convincente em comoção espontânea dos romances de Antônio Torres, também o mais sincero e obstinado no resgate dos afetos positivos e o texto mais inteiriço, amarrado e sem eventual desmaio de composição. Com O cachorro e o lobo o romancista do Junco se inscreve na singular galeria dos narradores que escrevem com os nervos expostos da emoção mais forra e mais fecunda, de maior empatia e verdade intrínseca.
Em seus dois últimos romances (sem contar Pelo fundo da agulha, lançado no segundo semestre de 2006, refazendo o ciclo começado por Essa terra), Antônio Torres percorre a metaficção historiográfica, centrada tematicamente em episódios alusivos às invasões francesas no Brasil (mais especificamente o Rio de Janeiro nos séculos 16 e 18) e à trajetória dos verdadeiramente invadidos e profanados em seus direitos e valores.
Conforme acentua o narrador de Meu querido canibal (2000), como os índios não dominavam a escrita, seu destino sobre a terra esfumaçou-se em lendas (Cit., 9). Por isso talvez que Meu querido canibal pode ser lido como um romance que emerge de uma dessas lendas, tendo os tupinambás como atores coadjuvantes e Cunhambebe como protagonista metonímico e adversário das cruentas rupturas impostas à Colônia brasileira desde o seu primeiro século. O livro pode também ser lido como esforço revisor da perspectiva colonizadora, esforço considerado neo-romântico, exposto às flechadas da história oficial, essa velha dama mui digna, aqui sujeita aos retoques da nossa indignação (Cit., 9).
Antônio Torres constrói narrativas explorando o menor espaço como ampliações do olhar para questões universais, seja no plano ideológico, telúrico, metaficcional. Assim, compreende o romance, conforme Camus, como um exercício da inteligência a serviço (ou filtrado) da sensibilidade estética, nostálgica ou revoltada, reunindo indignação e ternura. Sua leitura do passado é feita como opção repensadora (e recompensadora) do presente. Nessa visão pós-colonialista, o passado não se ressente de mero fruto de contemplações monumentalistas, nem matéria de ressentimentos estéreis. Em Meu querido canibal, signos de devoração antropofágica oswaldiana fazem o indivíduo revisto e revisitado, ampliado ou deformado das intrínsecas e renovadas configurações históricas e literárias.
O romance revisa o tratamento dado ao índio, atribuindo-lhe persona e identidade anímica, predicados completamente ausentes dos compêndios escolares e acadêmicos. Sob a forma da representação ficcional a partir do divergente da construção dos discursos, Meu querido canibal põe em relevo a voz do índio, num rumo ruptor do caráter dependente e subalterno do oficialismo. O rito discursivo passa a operar em sintonia com o penhor da fragmentação do real objetivo, visando a uma reconstituição reconstrutora, pondo termo à utilização de meios e recursos convencionais da cultura fora da natureza.
Se o romancista de Essa terra narrou e descreveu o homem fragmentado e descosido, sujeito a impactos, choques culturais, marginalização e periferismo, supremacia hegemônica das metrópoles sufocando individualidades; se a perda de identidade é conseqüência das marcas apagadas da nostalgia de um passado que ruiu, o narrador denunciando a angústia humana pelo desenraizamento, claro que o autor de Meu querido canibal balisará o romance se não pelo anulamento do passado colonial que, de forma consciente e historiográfica, contribuiu para o aniquilamento moral dos autóctones, parodiará, como Oswald de Andrade, escarnecendo da força, reinserindo a pessoa civil do índio. Em conseqüência, canibalizará o passado oficial e seus modelos de culto à convenção, desvelando fisionomias obscuras ou esmaecidas pelo apagamento das marcas.
Assim, Meu querido canibal desmonta eixos de etnocentrismo concentrador do pensamento único. O retorno ao passado só terá sentido se permitir ressignificações dialetizadoras e o romance de Torres recria esse passado em dimensões repensadoras, estabelecendo novos fluxos discursivos e possibilitando a crítica da cultura e das relações temporais passado/presente. O objetivo é a assunção de uma consciência dos sujeitos e objetos históricos sem a hierarquização paralisadora dos efeitos dominantes nas versões opacas dos vencedores. As três partes do romance convidam a uma agudeza crítica, reorientando o discurso histórico em torno de uma nova Confederação dos Tamoios.
Ao passo que o Romantismo de Alencar disseminaria a idéia do índio manso, o bom selvagem atado ao jugo discreto do mito do bom senhor, Meu querido canibal erigirá uma imagem do chefe guerreiro, do bravo e incansável refugador das tiranias colonialistas em voga no Novo Mundo, ampliando o choque cultural ao corpo-a-corpo do debate. Como Cunhambebe, o romance de Antônio Torres é reagente à imagem pródiga do índio ingênuo e prosaico, burlado por espelhinhos e bugingangas, tendo sua história asfixiada por superstratos violentadores. À herança apagada dos dizimados, a reagente e canibalesca nova versão dos fatos, dissolvendo-se fronteiras postiças entre História e Literatura e dos objetos exclusivos de cada uma.
Entre o verossímil e o factual, a obra de Antônio Torres inova pelo leque e o prestígio diferenciadores das versões. Incontáveis trechos do romance ajudam a pulverizar a farsa do pensamento excludente, oferecendo novas angulações do problema, na forma avessa às mistificações e ombreando-se ao que caracterizamos como culturas de resistência, pelo reconhecimento da diferença e seus valores permanentes. Cunhambebe não teria melhor representação étnica e epopéica do que a que lhe é conferida no romance Meu querido canibal: um guerreiro tupinambá no tempo da pedra polida, a combater os inimigos de seu povo. A faceta anti-portuguesa e pró-interesses dos franceses escamoteia o convívio hedonista e sensual a uma festa civilizatória, esquecida da violência dissolvente da corrupção, das doenças, dos vícios, deserções e mortes patrocinados pelos europeus — fossem portugueses, franceses ou holandeses.
A narrativa de Antônio Torres prima pelo dialogismo com a ciência e a cultura e, mais, o contrapontístico intercurso temporal, citando referências, conhecimentos de homens e mulheres do passado e do presente indistintamente, socorrendo-se, por exemplo, do pensamento de Einstein, de que é mais fácil destruir um átomo do que um preconceito (Cit., 20). O presente do narrador completa o percurso de sua reavaliação do país e do romance. O querido canibal de hoje seria trucidado pelas balas perdidas ou pela liqüidação de qualquer identidade na Barra da Tijuca (in)devidamente maiamizada, made in USA.
Já em O nobre seqüestrador (2003), com o pretexto de seu segundo romance histórico, o romancista reflete sobre a cidade do Rio de Janeiro, refém ontem, como hoje, das impropriedades de seus seqüestradores, municiados de cinismo e arrogância e o beneplácito de nativos e governos, pagando a vilania com a pusilanimidade cúmplice, a hipocrisia volante e a indiferença aliciadora. Muitas dessas reflexões provêm da própria análise do corsário René Duguay-Trouin, que monologa e se diverte com o pânico que instalou no Rio de Janeiro em princípios do século 18 inflado de invasões e efervescências. É desse narrador soberbo e melífluo, aliás, a análise precisa e cortante de que Canalhas não têm pátria. Têm interesses imediatos (Cit., 17).
De uma certa maneira, O nobre seqüestrador complementa o roteiro de contrafações historiográficas de Meu querido canibal. As peripécias conquistadoras do corsário Duguay-Trouin, tutelado por Luiz XIV (o rei-sol), não apenas tomou de assalto o Rio de Janeiro em 1711 (tendo antes pensado em saquear a Bahia, ainda centro administrativo do Brasil Colônia) — pretendendo a re-instalação da França Antártica, compelido pela febre do ouro em Minas Gerais —, como antecipou a visão do caos noturno de um país modular em desorganização e arbítrio, submetido à lei do mais esperto. O monólogo de Duguay-Trouin presentifica-o como alter-ego esquivo e irônico do narrador, perspectivando uma atualidade ainda mais irônica.
É possível que o nobre do título seja também irônico (da aristocracia ou da distinção de caráter). Mas isso não nos ocorre da leitura da primeira parte do romance, onde a estátua falante de Duguay-Trouin expõe e dispõe de suas aventuras de marinheiro e almirante vingador do prestígio de uma França quase arruinada por tantas guerras. O narrador dialoga com um desconfiado interlocutor, assente em quase tudo com o que vai ouvindo e transformando em biografia temperada de picaresco e glosa sarcástica. O romance histórico, então, deriva para o romance-reportagem sobre personalidades históricas e a cidade do Rio de Janeiro ilha-se em confinamento de medo de novos saques, assaltos, seqüestros e profundas concussões na vida civil transtornada em paranóia, onde se sepulta diariamente qualquer sopro de racionalidade cordial. Por isso o narrador conclui que a história dela (da cidade do Rio de Janeiro) é a dos seus próprios arrasos. E não foram poucos (Cit., 147).
A terceira parte do romance registra alegoricamente a cidade do Rio lastimando seu destino de invasões e estupros, fenômenos sociais e bélicos de que sai sempre aviltada e com surtos de baixa estima moral, quase sempre entregue à sua própria sorte e ao discurso retórico de quem a deveria defender e a abandona ciclotimicamente. As querelas históricas são denunciadas e o relato épico se despe da epopéia para vestir a túnica da humildade lírica, pois O nobre seqüestrador, no fundo, é uma elegia e um canto de afeto do romancista ao Rio de Janeiro metonímico da afeição e cordialidade que tributamos ao próprio país. Isso, apesar de a cidade ter perdido sua aura de Cidade Maravilhosa, vitimada por perversos ciclos de invasões mil vezes piores que as do passado remoto e seus seqüestradores fossem nobres ou meros capitães de pirataria e rapinagem.
Na contramão do Pindorama, de Xavier Marques, o romance histórico de Antônio Torres tem um projeto escancaradamente revisor, crítico e anti-apologético.
*Do livro Floração de imaginários, o romance baiano no século XX, de Jorge de Souza Araújo, premiado pela Academia de Letras da Bahia / Braskem S/A, e publicado pela Via Litteranum Editora: Itabuna/Ilhéus, Ba, 2008.