Melchíades Cunha Júnior
especial para o Jornal da USP – Universidade de São Paulo (24 a 30/06/1991), por ocasião do lançamento de Um Táxi para Viena d’Áustria pela Companhia das Letras.
Como fazer literatura nestes trópicos em tempos de pós-modernismo; nessa terra que se afasta a galope da civilização e avança com fúria para a barbárie? Como emergir deste oceano de mediocridades, misérias, corrupção, violência, modismos e desencanto em que meteram a pátria-amada-mãe-gentil? Ah, a produção cultural desse fim de milênio, a nossa e a dos outros…
E eis que surge Um Táxi para Viena d’Áustria, do baiano-paulista-carioca Antônio Torres (Companhia das Letras). Romancista bóia no oceano, grita-se da ponte.
Antônio Torres, agarrado em sua bóia, é de uma geração que se preparou para não naufragar. E não desistiu do preparo. É preciso estar atento e forte para manter-se um cidadão competente e não encher, com seu despreparo, a paciência do próximo (no caso, o leitor). Ah, se todos os que se metem com as letras soubessem disso… Torres preservou-se, também, como um bom cordial brasileiro, desses carregados do sentimento da justiça, mas sem as chatices do militante. Desses que, já na maturidade, descobre-se em andrajos para uma festa que será cada vez mais difícil de acontecer. Oh pátria-nossa-mãe-gentil, o que fizeram (fizemos todos?) com teus filhos? Oh, um táxi para a capital austríaca! A saída é procurar a saída, mesmo que a saída se chame morte? Já não se disse que é preciso morrer para se nascer?
Com o desencanto não se faz boa arte, sabemos todos. E o desespero tampouco a garante. E o mesmo se diga do talento: insuficiente, por si só, para gerar um “clássico; um cult, como se diz nos dia de hoje. E será possível escrever nesses nossos dias alguma coisa com gosto de novo, que valha o prazer ou o esforço da leitura, que mereça, enfim, ser publicado?
Ou o melhor será continuar perdendo/ganhando o nosso tempo apenas com o que de definitivo já se escreve sobre a condição humana – a razão primeira e última da criação literária? O bom preceptor (essa profissão em desuso há décadas) aconselhava a leitura e a releitura permanente dos clássicos. Está tudo lá, em livros que não se prendem ao estilo, época ou lugar em que foram escritos. Só que está cada vez mais raro aparecer um clássico, um cult, se preferirem.
Eis que um Táxi para Viena d’Áustria nasce como um clássico. Um clássico nos novos tempos brasileiros do cólera; e é um resgate geracional. De uma geração da qual muuitos já desistiram da pátria-linda-alcatifada-de-flores: uns partindo para outras paragens onde não canta o sabiá, outros se exilando pelo interior do país-maravilha, muitos se refugiando em cidadelas de altos muros, e outros tantos aderindo ao cinismo ou recorrendo aos desinfetantes.
Os resistentes, como Antônio Torres, testemunham que ainda estão por aí, escandalizando com o verbo e o chicote, como o Filho do Homem. Mas quando o horror é tanto será possível falar do horror sem provocar o bocejo do tédio? Torres conseguiu, apesar de insistir em que não precisamos mais dormir para termos sonhos maus. O sonho mau – ele nos diz – já dispensa o sono. Basta estar desperto e deambular pelas grandes cidades da pátria-amada-brasil.
Em Um Táxi para Viena d’Áustria, um veterano publicitário desempregado mata um amigo a quem não via há mais de vinte anos. Um gesto de comiseração, uma eutanásia? Não se sabe. Um absurdo, uma alucinação, uma perfídia? Um crime de morte, certamente. O Raskolnikof, de Dostoiévski, o Mersault, de Camus, também mataram. E nós nos apiedamos deles mais do que das vítimas. Para alguns será necessária essa descida aos infernos? Não há explicações (ou há?) para os dois tiros disparados por Veltinho na barriga falante do amigo, numa tarde azul, de muito sol naquele apartamento de Ipanema. O leitor é levado a uma espécie de cumplicidade. Poderia acontecer comigo…
Este último romance (ou novela?) de Antônio Torres o coloca, definitivamente, no time dos grandes. A densidade de seu relato ganha força a cada linha, num texto impecável, com quatro anos de garimpo. É um romance de sol, como O Estrangeiro; e de brumas, como Crime e Castigo. Do sol dos tristes e alegres trópicos. Trópicos cada vez mais brumosos, onde a alegria (gosto de viver?) para uma geração, como a de Antônio Torres, só pode ser obtida com o que se produz com a própria pena. E não espere reconhecimento, nem solidariedade.
Um Táxi é um desses livros que se lê sem pausas, de uma arrancada só. E nos convida, imediatamente, a uma segunda leitura.. Aí, então, o veredicto definitivo: estamos mesmo diante de um clássico.
P.S.: Um amigo, de geração mais recente, leu o livro de Antônio Torres e o que escrevi acima. Fez-me esta ponderação: “Suas colocações não valem apenas para a sua geração. Mesmo as mais novas, como a minha, que também sonharam em fazer o homem amigo do homem, sabem na pele o que é isso”.