Meu querido canibal Paulo Becker

Réquiem Índios Brasileiros – Especial para a revista VOX XXI, Porto Alegre, RS, outubro de 2001.
Paulo Becker


Antônio Torres narra, em um romance enxuto, o processo de ocupação do Brasil pelos colonizadores portugueses. Ou, por outras vias, a luta inglória dos índios brasileiros pela manutenção de sua terra e liberdade.

Num relato ágil e bem humorado, apesar do tema trágico, o narrador concentra-se no primeiro sÉculo da colonização, mais especificamente nos anos imediatamente anteriores e posteriores a 1557, data da morte de Cunhambebe, o “querido canibal” a que se refere o título da obra. Cunhambebe, cujo nome quer dizer “língua que corre rasteira” ou, mais simplesmente, homem de fala mansa, foi chefe dos tupinambás, tribo que se aliou aos franceses e combateu ferozmente os colonizadores portugueses. Dono de impressionante força física e de uma valentia a toda prova, Cunhambebe construiu sua legenda com sangue. Dava combate sem trÉgua a seus inimigos, fossem eles índios de tribos vizinhas que disputavam seu território ou fossem os portugueses, que chamava de “perós” (ferozes), por quererem fazer os índios de escravos. Torres aponta-o como o maior, o mais forte e o mais temido chefe indígena brasileiro de que se tem registro, imbatível nas artes da guerra, que justiçava os inimigos com impressionante crueldade e os devorava.

Mas o herói da narrativa não É somente Cunhambebe. Some-se a ele a figura do chefe Aimberê, que reuniu vários chefes indígenas, inclusive Cunhambebe, na Confederação dos Tamoios, que tinha por objetivo resistir à invasão portuguesa e libertar os índios aprisionados. A Confederação dos Tamoios durou cerca de 12 anos, atÉ que as tribos confederadas foram dizimadas pelo exÉrcito comandado por Mem de Sá, então governador do Brasil, em 1567. Durante esse período, entretanto, os confederados infenizaram a vida dos portugueses, e tambÉm conseguiram negociar com eles uma trÉgua provisória e a libertação dos índios escravizados, em troca da vida de Manuel da Nóbrega e JosÉ de Anchieta, feitos refÉns pelos confederados. A esta altura da narrativa, mostra-se uma face pouco conhecida de Anchieta. Ele aparece não apenas como o autor de poemas e autos religiosos e incansável catequizador dos índios, que vai corajosamente negociar com eles e acaba sendo feito prisioneiro. Quando não consegue subjugar os selvagens pelas palavras, Anchieta põe em prática a tese do dominicano Juan GinÉs de Sepúlveda, apresentada em uma reunião do Concílio de Trento realizada em Valadolid, na Espanha, em 1550, segundo a qual os selvagens que não se submetessem aos colonizadores cristãos deveriam, com justiça, ser exterminados. Partindo dessa premissa, Anchieta empenhou-se em convencer Mem de Sá sobre a necessidade de dizimar os tamoios, tribo que, em suas próprias palavras, constitui uma “brava e carniceira nação, cujas queixadas ainda estão cheias de carne dos portugueses”. E após os portugueses liquidarem a fatura, Anchieta exulta, ao comentar uma batalha, louvando a ação dos colonizadores: “Quem poderá contar os gestos heróicos do chefe à frente dos soldados, na imensa mata! Cento e sessenta as aldeias incendiadas, mil casas arruinadas pela chama devoradora, assolados os campos com suas riquezas, passado tudo ao fio da espada!”

A narrativa ziguezagueante de Torres entremeia os confrontos entre índios e portugueses com as lutas dos portugueses contra os holandeses e os franceses, igualmente dispostos a se apossarem do território ou das riquezas brasileiras. Nessas guerras, os índios encontram-se sempre implicados dos dois lados. Há aqueles que receberão honrarias e glória no futuro, como Araribóia, depois Martim Afonso, que soube alinhar-se do lado certo, o dos portugueses vencedores. E há os que, como Cunhambebe e Aimberê, se aliaram aos franceses, sem deixar, porÉm, de defender a autonomia das nações indígenas, e que foram vencidos e esquecidos pela história oficial.

Em decorrência desse esquecimento, afirma-se outro herói no romance, que não É ninguÉm mais que o narrador. Convertido em dublê de historiador, o narrador canibaliza antigos relatos históricos e narrativas de viagens, ou pe­regrina pelo Rio de Janeiro a buscar, em seus sítios históricos e na memória coletiva do povo, os indícios do passado remoto. É da ação desse narrador, que repassa a história a contrapelo, como queria Walter Benjamin, que emerge dignificada a figura dos índios brasileiros, vencidos sim, mas que morreram de pÉ, como Cunhambebe achava digno morrer, defendendo sua terra, seus valores e seus costumes. E, ao final do romance, É esse narrador que se ergue energicamente contra a postura cômoda das autoridades que, nos dias atuais, resolvem esquecer conscientemente os conflitos passados e as utopias fracassadas com a desculpa fajuta de que isso seria uma perda de tempo. Ante a declaração de que É inútil discutir a História, feita por certa autoridade de Lisboa em visita ao Brasil, o narrador pergunta, indignado: “Perda de tempo para quem, cara-pálida?” E replica: “Conta outra, ó pá.”

Meu querido canibal surge, desde logo, com jeito de clássico. Sua releitura da história da colonização do Brasil É instigante e reveladora, e lembra, pela denúncia das selvagerias cometidas pelos colonizadores contra os supostos selvagens, textos como O paraíso destruído, do Frei BartolomÉ de Las Casas, e As veias abertas da AmÉrica Latina, de Eduardo Galeano. No aspecto formal, Torres tambÉm acerta em cheio, conseguindo impor um ritmo obsedante à narrativa. Sem se demorar em descrições ou em interpretações, o narrador restringe-se a apresentar, como que atravÉs de flashes, alguns fatos significativos, embora pouco conhecidos, do passado nacional. A ação progride atravÉs de sucessivos deslocamentos temporais, e encontra como constante contraponto a referência às vicissitudes da sociedade brasileira dos dias atuais. Por fim, a linguagem da obra É despojada e irreverente, marcando a distância do narrador, que se dispõe a canibalizar a História, em relação ao discurso pomposo e carrancudo da História oficial.

Para quem quiser refletir, a partir de hoje, sobre a identidade problemática do povo brasileiro, Meu querido canibal passa a ser, junto com outras obras já consagradas, como as de Euclides da Cunha, Mário de Andrade, SÉrgio Buarque de Holanda e Gilberto Freyre, uma referência obrigatória. O que não É pouco.