Essa Terra um clássico contemporâneo

Correio das Artes – João Pessoa, PB, 3 e 4/11/2001.
Aleilton Fonseca

Capas de Essa Terra

O romance Essa terra, de Antonio Torres, chegou à 15ª edição, pela Editora Record, comemorando 25 anos de circulação, já traduzido para cerca de dez idiomas, estudado em artigos, ensaios e teses no Brasil e no estrangeiro. O sucesso do livro começou já na estréia, em 1976, com edições seguidas, ao merecer da crítica a saudação como uma ficção madura e primorosa.

Essa terra focaliza, na experiência de uma família do sertão baiano, o drama da migração nordestina para São Paulo e suas conseqüências psicológicas e sociais. Sob a ótica do narrador Totonhim, o irmão mais novo, conhecemos a trajetória do protagonista. Nelo é o migrante que, ao deixar sua terra, sua família e sua identidade para trás, entrega-se à metrópole paulistana e nela se perde, desenraiza-se e termina derrotado. Ao retornar ao lar paterno, encontra-se doente, abandonado e desiludido. Não suporta o peso da frustração, ao sentir que não contemplara as expectativas da família, sobretudo de sua mãe, que o imaginava rico e vencedor. O suicídio de Nelo é, portanto, o nó do enredo, síntese do impasse, do desenraizamento e da frustração que destroem o personagem. Este drama pungente constitui uma ficção precisa, de grande força estética, uma espécie de depoimento sobre um aspecto dramático da sociedade brasileira de meados do século XX. Pode ser visto ainda como um memorial consubstanciado no contraste gritante entre os grandes centros desenvolvidos e o sertão esquecido à própria sorte, em que a redenção do homem se reduzia ao horizonte das tristes estradas.

Essa terra tem o toque mágico dos grandes livros, desperta no leitor o senso de reflexão comiserada acerca do semelhante e a suas condições de existência, açula a vontade de compreensão e a solidariedade, provoca uma visualização mais profunda do ser humano. Este romance nos faz enxergar mais profundamente a realidade dos excluídos, reconhecendo-os enquanto sujeitos e pacientes de um drama histórico. Ao lê-lo sentimos aquele mesmo apelo de Vidas secas, assim como a marca da hombridade que se capta no sertanejo de Os sertões. Trata-se de uma escrita densa, de economia formal medida, tecida com a maestria de um romancista que consegue aliar precisão técnica à ternura do relato, mantendo, apesar da tensão, uma “camaradagem” equilibrada com seus personagens. Enfim, esta é uma prosa que alicia o leitor fazendo-o mergulhar afetivamente na leitura e nos dramas as personagens.

A migração é um fenômeno universal, assim como o desenvolvimento desigual dos lugares. Campo, cidade, metrópole, essa é a rota que exibem todos os países, num fenômeno mundial. O drama da viagem, do desenraizamento, da diáspora, da perda de valores fazem de Essa terra um romance universal, pondo em relevo a feição particular que este assume em território brasileiro, na trajetória sertão/metrópole, como uma viagem de ida e volta, não só em termos concretos, no deslocamento dos corpos e das vivências, mas na transição de valores, comportamentos, imaginários e condições de vida.

É auspicioso para a literatura brasileira ter um romance dessa dimensão, surgido na abertura do último quartel do século XX. Um livro que se coloca na mesma linhagem de O quinze, Vidas secas e Vila Real, naquilo que esses romances têm de esforço para compreender a saga do nordestino, em condições tão adversas. Nesse sentido, pela fortuna crítica amealhada em suas 15 edições, pela saga em terras e universidades estrangeiras, em apreciadas traduções, Essa terra merece registro entre os grandes romances brasileiros. Um clássico contemporâneo que se tornará cada vez mais visível na pequena lista de livros que jamais caem no esquecimento, porque se tornam objeto constante de estudos, referências, matéria de exames e concursos, fazendo parte do cânone escolar corrente, lugar das obras consagradas. O romance de Torres tem a rara qualidade de ser ao mesmo tempo profundo e acessível a um público mais amplo. Rico em significações não só estéticas, mas também sociais, dialoga com diferentes dimensões do saber, interessando também aos estudiosos da cultura, da história, da geografia humana, entre outras.

Essa terra, essa vida, essa busca – uma viagem a que a leitura nos convida, de forma que ao final da trajetória, poderemos exorcizar o drama humano e social de Nelo pela forma narrativa e compreensiva que o narrador Totonhim nos ensina. Ensinar a compreender a vida não é o papel social do escritor, para além de seu irrecusável compromisso estético? Para compreender melhor essas questões, leiamos Totonhim, Totonho, Totinho, simplesmente Antônio Torres.


“Eu admiro muito a ironia, o calor e o estilo de Essa Terra, que tão brilhantemente descreve pessoas cujo destino é mudar de lugar.” – Doris Lessing

ESSA TERRA

Gerana Damulakis
gerana@atarde.com.br

Capas de Essa Terra

No livro Machado de Assis, a ensaísta Lúcia Miguel Pereira, observa que, no grande mestre, vemos confirmada a importância do regionalismo na formação do artista. Com aquela escrita crítica única, ela segue mais longe em suas considerações e lembra que este regionalismo constatado, não é o regionalismo do espírito, mas o da sensibilidade. Vale reproduzir as palavras da própria Lúcia Miguel: “As experiências como que se fixam melhor, são mais profundas, quando o ambiente é sempre o mesmo. Ir lentamente descobrindo o humano no local, partir do particular para o geral, torna mais natural e espontânea a criação”.

Tais colocações chegam a calhar aqui para tratar do livro de Antônio Torres, Essa Terra, nada menos do que a 15ª edição. A Editora Record está oferecendo ao público as reedições dos livros do baiano de Junco, com formato e capas dentro de um determinado padrão para quem quiser compor uma coleção: O Cachorro e o Lobo; Balada da Velha Infância Perdida; Os Homens dos Pés Redondos e agora Essa Terra. De 1976 até hoje, Essa Terra vem ganhando traduções mundo afora; além de traduzido para o francês, inglês, italiano, alemão, holandês, hebraico e espanhol, sairá em Cuba brevemente.

Mas é tempo de justificar a chamada de Lúcia Miguel Pereira para ser aplicada a este texto: Essa Terra é ambientado em Junco, hoje Sátiro Dias, interior da Bahia. O regionalismo de Antônio Torres trata desta terra e sua gente e, principalmente, do desejo e da realização mesma de sair do mundo da seca. No seu primeiro livro, Um Cão Uivando para a Lua, de 1972, a miséria do personagem que cresceu em Junco é apenas o começo da trajetória de um repórter rumo a São Paulo. Em Os Homens dos Pés Redondos, um publicitário, também trabalhando em São Paulo, teve sua infância passada em Junco. Finalmente, em Essa Terra, está evidente o tratamento tanto da miséria dos que vivem em Junco, como do êxodo, na figura do irmão do narrador principal, que partiu para São Paulo, ganhou dinheiro, mandou dinheiro de lá para a família que ficou no interior, e voltou, mas não afortunado como se poderia prever, e sim acabado, bêbado e traído pela mulher.

As memórias do personagem, chegadas como fragmentos, são aquelas memórias profundas de que fala Lúcia Miguel Pereira, fixadas no ambiente. E com isto de trazer o Junco para a ficção, Antônio Torres descobre “o humano no local, parte do particular para o geral, torna mais natural e espontânea a criação”. Regionalizando sua obra, Antônio Torres ganha na agudeza com que tece o drama e os personagens são mais reais. Em Essa Terra aparece de passagem o Nego de Roseno, dono do armarinho, que é personagem de um conto trazendo seu nome “Segundo Nego de Roseno”, do volume Meninos, Eu Conto (Record, 1999). Essas particularidades criam uma cumplicidade imediata com o leitor, fazendo com que se estabeleça uma intimidade muito interessante para a leitura.

>Outro ponto que o escritor sabe também atingir o leitor prendendo-o é o seu uso de frases curtas, sempre muito objetivas, em várias ocasiões chegando mesmo a serem bombásticas — aqui é imediata a lembrança do episódio da mãe do personagem, doente, dentro de um carro em direção a um distante socorro pelo deserto do sertão, a vomitar pela janela; há frases de enorme poder de expressão do momento. Mas o estudo minucioso sobre o livro encontra-se no posfácio assinado pela professora Vania Pinheiro Chaves, da Universidade de Lisboa.

Tendo em vista que alguns títulos estavam esgotados, os romances reeditados de Antônio Torres são oportunidades para o leitor passar a fazer parte dos admiradores deste ficcionista baiano, autor de mais de uma dezena de livros, sempre reconhecido e aplaudido.