Indignação sustenta novo romance de Antônio Torres

Folha de São Paulo, 1º de Junho de 1991
José Geraldo Couto

À esquerda a capa brasileira com a foto do reflexo de prédios em uma superfície curva, a segunda capa toda vermelha, a terceira com textura semelhante a couro e a quarta é a mais recente com um prédio vienense na parte superior e a silueta de morros cariocas na parte inferior
Quatro capas para Um Táxi para Viena D’Áustria

A literatura de Antônio Torres sempre esteve sintonizada com as tendências literárias de seu tempo, o que não significa adesão às modas correntes, mas, pelo contrário, uma tomada de posição crítica e pessoal diante delas. Seu sétimo romance, o pequeno “Um Táxi para Viena d’Áustria”, não apenas dá continuidade a esse diálogo com a literatura brasileira contemporânea como ocupa nele um papel singular.

A “ação” do livro transcorre em uma única tarde, no espaço de um quarteirão de Ipanema. É ali que Watson Rosavelti Campos, um redator publicitário desempregado, mata um amigo que não via há 20 anos, entra num táxi e, ao ouvir pelo rádio a “Missa em Dó Maior”, de Mozart, “viaja” no tempo e no espaço para frente e para trás, enquanto o carro, preso por um congestionamento-monstro, não sai do lugar.

Duas coisas chamam a atenção à leitura dessa breve sinopse. A primeira delas é a tensão entre um tempo narrativo extremamente concentrado e uma amplitude espacial e temporal virtualmente sem limites, facultada pelo delírio do protagonista. Um procedimento semelhante aparece em quase toda a obra do autor, e de modo especial em “Carta ao Bispo” (1979). A segunda coisa é a (falsa) impressão de que o romance filia-se a uma certa ficção ligeira (no sentido de veloz e também no de superficial) recente, marcada por um cosmopolitismo de fachada, por uma pseudomodernidade asséptica e acrítica. O que distancia Torres dessa tendência – e até o opõe a ela – é a ironia. E uma sagrada ira que o leva a todo momento a proclamar estridentemente a miséria material, política e cultural que cerca o protagonista (seu próprio nome, Rosavelti, é um erro de transcrição), estabelecendo os contornos de seu drama individual.

O fluxo narrativo é frenético e envolvente, alternando com desenvoltura a terceira e a primeira pessoas, a gíria cotidiana e a paródia do jargão publicitário, a gravidade e o deboche, o tom confessional e o distanciamento metalingüístico. Assim como “Essa Terra” (1976) acertava contas com o romance regionalista, “Um Táxi…” de certo modo funde e resume criticamente inúmeras vertentes da ficção urbana brasileira das últimas décadas: a violência verbal de Ruben Fonseca (especialmente o de “O Cobrador”); a fragmentação e colagem do “Zero” de Loyola Brandão; o naturalismo de João Antônio; a vivacidade “pop” de Roberto Drummond…

Ao trabalhar essas linhas disparatas de forma absolutamente pessoal e sem concessões, Torres construiu uma obra irregular, que às vezes dá a impressão de um conto esticado demais, em outras a de um romance inacabado. O livro foi reescrito várias vezes. Um último trabalho de “copy desk” que lhe aparasse as arestas talvez fosse fatal para o brilho e a contundência do conjunto. Exagerado, freqüentemente redundante, quase panfletário, mas sobre tudo radical e independente. “Um Táxi para Viena d’Áustria” é um livro alimentado pela indignação e pelo talento de um artista que tem o que dizer sobre seu tempo – e sabe como dizê-lo.

Barriga falante, uma lúcida metáfora do subdesenvolvimento

Jornal da Tarde, São Paulo, 18/05/1991
Oscar D’Ambrosio

Os dez capítulos do novo livro de Antônio Torres confirmam um traço marcante de sua obra: frases curtas, despojadas e diretas. O protagonista, um publicitário, é uma das mais preciosas expressões literárias modernas do drama do desemprego.

Ao estrear em 1972 com Um Cão Uivando para a Lua, Antônio Torres logo despertou a atenção da critica. Não só ganhou o Prêmio de Revelação, mas também começou uma carreira que, ao longo do tempo, o coloca, junto a Ignácio de Loyola Brandão, Ivan Ângelo, Márcio de Souza, Oswaldo França Jr. e João Ubaldo Ribeiro, como um dos principais expoentes de uma geração que não será esquecida na literatura brasileira.

Um Táxi para Viena d’Áustria, sétimo romance de Torres, confirma as previsões da crítica. O autor não se limita apenas a exibir a apurada técnica de obras anteriores, mas atinge o nível dos mestres, parodiando a si mesmo e evocando, com sutilezas e ironia, textos anteriores, publicados em vários momentos de sua trajetória ficcional.

O presente romance tem um eixo aparentemente simples: um publicitário desempregado, imerso em sua angústia, marca um encontro com um amigo que não via há muito tempo e o mata. Após o crime, toma um táxi. Porém, este não sai do lugar. Um enorme congestionamento parou a cidade. O assassino começa então uma viagem interior que mistura surrealismo, dados biográficos, humor e ácida visão da realidade nacional.

Os dez capítulos da obra confirmaram um traço marcante de Torres: suas frases são curtas, despojadas e diretas. O publicitário, comicamente chamado Watson Rosavelti Campos, é uma das mais preciosas expressões literárias modernas do drama do desemprego. Sem ter o que fazer, Watson afunda em uma mar de bebida, a espera de telefonemas salvadores que nunca virão, improváveis ajudas de amigos e desespero.

A vítima de Watson é Cabralzinho, morto com dois tiros. Trata-se de um escritor de pouco sucesso. Subsiste graças a uma bolsa, sendo que, há alguns anos, fora internado em um manicômio, tendo passado por um tratamento de eletrochoques. Curiosamente, em Um Cão Uivando para a Lua, encontra-se exatamente o drama existencial de um personagem em um desumano hospital psiquiátrico.

O desemprego leva Watson a beber (“Andar, andar, até ficar de pé redondo, como um bêbado”). Esta imagem já tinha sido utilizada em Os Homens dos Pés Redondos (Francisco Alves, 1973), obra que mostra os últimos tempos do regime salazarista em Portugal. O contexto é outro, mas a simbologia é a mesma. Esmagados pelo autoritarismo, os lusos caminhavam morosamente rumo ao nada. O mesmo acontece com o publicitário desempregado de Um Táxi para Viena d’Áustria.

Vencido pela falta de perspectivas, o protagonista também se encaixa com perfeição em uma frase de Essa Terra: “O mundo é um relógio que perdeu o eixo: cada ponteiro vai para seu lado e cada louco fica no seu canto”. O romance da década de 70 referia-se ao patético drama das migrações internas e das terras abandonadas, porém seu tom triste, caótico e fragmentado vale também para o universo urbano retratado por Antônio Torres.

Todavia, torna-se ainda mais revelador o diálogo entre Balada da Infância Perdida e o recente romance. As reminiscências, alucinações, flash-backs, digressões e divagações de Watson no táxi parado confirmam a tese central de a Balada…: a utilização das experiências pessoais e das emoções do passado seria o principal caminho para uma pessoa reconstruir-se, tomando coragem para enfrentar-se no espelho e, em seguida, para recolocar-se na sociedade.

Um Táxi… apresenta o tom de um roteiro felliniano. As criticas ao modus vivendi urbano e carioca são avassaladoras. A epígrafe de Carta ao Bispo, pinçada de Nietzche, já apontava para o desejo de Torres de desmontar, através de sua prosa, os pilares de um país carcomido pelos cupins da corrupção, da incompetência e da hipocrisia: “Resta-nos a arte para não morrermos de verdade”.

O fato de Antônio Torres ser publicitário também não pode ser ignorado. Não se trata simplesmente de ver em Watson um alter-ego, mas de conceber esse personagem, som seu tom derrisório, como uma ácida representação dos bastidores do mundo da propaganda. Nada resiste aos olhos de um autor aparentemente convicto de que a sociedade está desmoronando.

A guerra estaria em todo lugar: nos morros, nas ruas, no campo, no emprego e no desemprego. Ao considerar a velocidade e o cinismo como “a receita universal da modernidade”, Watson nos oferece uma pista para apreender o verdadeiro motivo do assassinato de Cabralzinho. Trata-se de mais um momento de extremo talento do autor.

Cabralzinho padece de insuportáveis dores de barriga. Contudo, Watson apenas dispara a arma que encontra sobre uma mesa quando a barriga do amigo começa a falar. Com dois tiros, ela se cala. Podemos considerá-la então como a parte do corpo que dava voz e vazão às dores, medos e agonias de todo um povo, constituindo uma lúcida metáfora do subdesenvolvimento nacional.

As terríveis pontadas de Cabralzinho são sentidas o dia inteiro por todo o país. Após o assassinato, dentro do táxi, o rádio toca a Missa em Dó Maior, de Mozart. Daí os sonhos de Watson de ir para a harmoniosa e poética Viena e de subir ao topo da montanha mais alta e esperar “até que venha uma nuvem e me leve para um lugar tão longe que nem Deus sabe onde fica”.

Em Adeus Velho, Antônio Torres já pregava, embora no universo nordestino, a despedida dos absurdos do passado para o vislumbre de um glorioso futuro. Agora, mais maduro, o escritor baiano propõe, em tom de realismo fantástico, o extermínio do subdesenvolvimento para que todos tenham a possibilidade de sonhar ao ouvir Mozart e de alcançar as alturas sem a necessidade de encontrar Deus, mas apenas a de recuperar o brilho e o equilíbrio interior há muito tempo perdidos.

A Velocidade Ex-Tática

Nísia Vilaça
(“Paradoxos do pós-moderno – sujeito e ficção”, Editora UFRJ, 1986.)

O Barroco se explicita na “viagem” temporal construída no romance Um Táxi para Viena d’Áustria, de Antônio Torres. Um êxtase estático.

Tempos e lugares os mais díspares percorrem, afetam a personagem presa a um táxi em um engarrafamento, após cometer um crime aleatório: efeito de nenhuma causa. A personagem principal, Watson Rosavelte Campos, é um potiguar que trabalhava no Rio como publicitário até ser demitido. Entre um pileque e outro revê o Cabral, antigo amigo, em entrevista na tevê. Resolve visitá-lo, encontra-o deprimido, decadente, e mata-o num ímpeto. A história vem narrada em flashback delirante, enquanto Watson, refugiando-se num táxi parado, faz velozes viagens no imaginário espaço / temporal.

Ney Reis comenta no Caderno Idéias, do Jornal do Brasil, por ocasião do lançamento do livro: “É difícil não embarcar nesse pileque estilístico pelo imaginário do Rio classe média rumo a Viena”.

Gilles Deleuze, trabalhando a questão temporal, nos dá pistas para a leitura do trajeto de Antônio Torres neste seu último livro:

Velocidade não significa chegar primeiro a uma meta: às vezes, por ir com muita velocidade, se chega com atraso. Tampouco significa mudar; às vezes, por ir com muita velocidade, alguém se mantém constante e invariável. Velocidade é como um táxi: linha de espera, linha de fuga, engarrafamento de calçada, sinais verde e vermelho, ligeira paranóia, complicação com a polícia.

A velocidade a que se refere Deleuze parece presidir a estruturação do romance de Antônio Torres, onde o narrador nos introduz no burburinho do universo desencantado de uma Ipanema engarrafada, através de imagens fraturadas do cotidiano. A técnica é cinematográfica, jornalística, publicitária. Com takes rápidos, manchetes engraçadas e vivas, percorremos velozmente cenas, surpreendemos tipos das mais variadas classes, raças e sexos. Da turma do morro querendo descer às senhoras de fino trato, que aproveitam o trânsito parado para se ajeitarem no espelhinho do carro. O narrador se coloca simultaneamente de fora dos acontecimentos descritos e vivamente interessado, enquanto descreve e comenta o desenrolar do tumulto criado pelo acidente com m caminhão de Cola-Cola. Seu interesse fica nítido no emprego da função apelativa da linguagem: dialoga com várias das personagens. Ao motorista do caminhão, que adivinha drogado ou de porre, adverte:
– Tu pensas que foi muita sorte sair com vida deste acidente? Pois pensavas, burro e azarado, é o que tu és. Sorte mesmo seria teres partido desta pra outra melhor, levando junto sua congênita pobreza.

À técnica de radialista se misturam outros recursos para narrar o espetáculo. “O pau vai comer solto, amigo ouvinte a cobra vai fumar. Prepara o seu coração para muita emoção”.

Pequena quadrinha para narrar uma batalha de garrafas, intertextualidades literárias e musicais se misturam a ditados populares na composição do tumulto. Delineia-se então a personagem principal: um indivíduo descendo apressado pelas escadas do edifício número 3 da Rua Visconde de Pirajá. O narrador, que se opõe na posição de um motorista de táxi, observa as atitudes suspeitas e se pergunta sobre sua identidade. Maluco, paranóico, quarentão inofensivo ou culpado de algum crime? Depois desta primeira postura, numa visão de fora, o narrador-motorista de táxi passa a entabular com o suspeito uma imaginária conversa e aproxima-se mais da personagem. Quando o “campeão de salto aos degraus”, ou seja, o suspeito, entra no táxi do narrador-motorista há, então, uma mudança de ponto de vista narrativo. A perspectiva de fora é substituída por uma corrente de consciência que viaja desabalada pela imaginação, memória e desejos da personagem. Cala-se o narrador-motorista. Cessa a distância da visão de fora, expediente usado para criar o suspense policial. A passagem de uma visão a outra se dá em breve trecho através de discurso indireto livre, onde a ambigüidade do sujeito da fala reproduzida aponta para a cumplicidade entre o narrador e a personagem e indicia a substituição de um pelo outro ou a identificação dos dois.

Volta a recostar-se no banco do táxi, sente-se cansado e com sono. Hum, uma cama agora, hein, amigão? Dormir, dormir, dormir e acordar a milhares de quilômetros daqui.

O romance põe em cena uma geração que nos anos 60, ao tornar-se adulta, encontrou todos os deuses mortos, todas as guerras terminadas e toda a fé do homem abalada. É a literatura sem literatice. Fica mesmo explicitada a questão da escritura e as circunstâncias do mundo contemporâneo, distintas daquelas que presidiram a criação de um Machado, de um Joyce, de um Faulkner, de um Dostoievsky. “Como escrever sem mesa, cadeira, papel, casa, dinheiro, comida, emprego?” O jeito é caminhar no ritmo dos fragmentos, do rebaixamento do estilo, acompanhado de personagens sem nenhuma grandeza. Fala prosaica, fala em que registros múltiplos reproduzem no nível do significante o engarrafamento narrado. Viena d’Áustria é um ponto de fuga que não chega a ser trilhado. É a música de Mozart Missa em dó maior tocada no rádio do táxi que o leva à catedral em Viena d’Áustria. Trajetória kitsch. Sonhos, alucinações, misturam-se no táxi imóvel com cheiro de pólvora e combustível. “É como estar engarrafado no maior túnel do mundo, entre um tiroteio e um incêndio”.

Entre as altas velocidades do delírio, as pequenas memórias de um passado, ou na evocação das figuras paterna e materna, e do Cabralzinho, o amigo que será morto, o livro caminha em ritmo de surpresa. A mesma surpresa que tem a personagem ao descobrir-se assassino. O aleatório criando excessos e não economia de meios, como em João Gilberto Noll. O aleatório cria o crime perfeito no ritmo da modernidade, como comenta o narrador: “velocidade e cinismo, uma coceirinha no dedo. E pimba, esporro e êxtase”. A personagem Veltinho acaba por matar o amigo a partir de uma troca de canal fortuita, quando sintonizava na TV Educativa uma entrevista com outro amigo que não vê há 20 anos. A inconsciência do crime é sublinhada no livro pelo fato de o narrador, ao contar o momento decisivo, trocar a primeira pessoa pela terceira. “Watson Rosavelte Campos, filho da mãe honesta e pai corrupto, assassino em potencial, embora não saiba disso, chega finalmente ao prédio da sua vítima.

A estruturação do livro em fragmento impede que se reconstrua uma razão social (desemprego), uma crise existencial (suspeita de decadência) ou razões psicológicas (identificações com o pai). Não há preocupação com o desenvolvimento linear, mas com o caminho que “se faz ao andar”, como lembra o narrador na trilha de Antonio Machado. E Deleuze lembra: “O que interessa em um caminho, o que interessa em uma linha nunca é o princípio nem o fim, mas sempre o meio”.

O livro se inicia com o caos do engarrafamento e caminha nômade em direção a um ponto de fuga: Viena d’Áustria. O táxi não chega porque não parte e o narrador, ao final, caminha para ver o pôr-do-sol à beira-mar, bem devagar, enquanto espera que venha uma nuvem e o leve para um lugar tão longe que nem Deus sabe onde fica.

Em A Balada da Velha Infância Perdida, do mesmo autor, a personagem também tem vôos e sonhos movida pela embriaguez, mas a narrativa ainda possui uma linearidade na recuperação do passado de uma vida entre Natal, São Paulo e Rio, com outro viés de personalização própria aos livros de memória. Tal não sucede em Um Táxi para Viena d’Áustria. O narrador, em várias ocasiões, repudia a memória.

Pensar faz mal à saúde. Bom mesmo seria ter um dispositivo automático na cabeça. Pintou um pensamento indesejado? O dispositivo disparava e a cabeça passava a emitir uma música incidental sem referência, sem memória, sem lembrar nada.

Mais que sucessão de tempos, oposição de tempos e lugares como em A Balada da Velha Infância Perdida, temos superposição, acavalamentos. Técnica do pick-up, como o tartamundeio, de que fala Deleuze, opondo este procedimento ao Cut-up de Burroughs. Não há corte, mas multiplicações crescentes, idéias desterritorializadas. “Multiplicar os lados, acabar com todo tipo de círculos a favor dos polígonos”.

Torres reinventa a escritura e a libera da função-autor, cujos inconvenientes seriam: constituir um ponto de partida ou de origem, formar um sujeito de enunciação de que dependam todos os enunciados produzidos, fazer-se reconhecer e identificar numa ordem de significações dominantes e de poderes estabelecidos. Imprime ao discurso um uso rizomático que procede por interesses, cruzamentos de linhas, pontos de encontro no meio. Conversas e não colóquios ou debates. Afasta-se do modelo narcísico com seus estados de ânimo para se inventarem em dobras e devires barrocos.

Sem que o narrador saia do espaço do táxi são inúmeras as linhas de fuga criadas no romance. Surgem devires que se sobrepõem à partida do Rio ou à chegada a Viena. A respeito deste thriller de Antônio Torres não se poderia comentar: “Elementar, meu caro Watson”.

Nem tudo é fantasia

Revista Visão, São Paulo, 29/05/1991
Álvaro Alves de Faria

Antônio Torres sabe que as saídas quase não existem mais. Dentro e fora da literatura. Isso constatado, a ironia inteligente pode ser alternativa para driblar as sombras que atravancam os caminhos. Um Táxi para Viena d’Áustria é um romance que sugere exatamente o seguinte: em tempos hilários, a ordem é ser mesmo hilariante. Conta a história de um publicitário desempregado que comete um crime e pega um táxi para fugir. Mas, hora errada: no rush. Ipanema pára. No meio do congestionamento, o fugitivo se detém na Missa em dó maior de Mozart, que candidamente flui do rádio do carro, e inicia uma viagem imaginária, na qual nem tudo é realidade, mas a fantasia está longe de ser apenas um sonho.

O romance se desenvolve com um humor dilacerante. Ladrões assaltam falando de Cervantes, Machado de Assis, Shakespeare. Salvadores da pátria da tribo ipanemense, dourados de sol, apresentam-se para resolver problemas insolúveis: “Cessa tudo enquanto a antiga musa canta, que um valor mais alto se alevanta. Suspirem, gatinhas do meu Brasil brasileiro, meu mulato inzoneiro. Aleluia! Finalmente um machoman no nosso pedaço ultra light”. A essa linguagem de deboche, Torres liga uma informação fundamental: se o tal herói abrir a boca cantando em inglês, no mais perfeito accent de Nova York, com certeza haverá muito desmaio.

Prova – Baiano nascido na cidade de Junco (hoje Sátiro Dias), Torres começou a ser editado em 1972, meio que desnorteando a crítica com Um cão uivando para a lua. Estava lá, prontíssimo, um grande escritor brasileiro que, a cada novo livro, reafirmaria um raro talento de narrador de histórias cujos personagens estão na realidade das ruas de um país infestado de gratuidades. Com livros publicados na Alemanha, França, Inglaterra, Estados Unidos, Argentina e Israel, Torres já cedeu direitos para tradução de Um táxi para Viena d’Áustria à França e à Alemanha. Esse interesse tem razão de ser, já que sua literatura representa o que de melhor se produz no Brasil atualmente.

Este novo lançamento da Companhia das Letras é prova concreta disso, revelando um país que, apesar da pobreza terceiro-mundista, insiste em existir com seus refrões de esperteza. O personagem que ouve Mozart não quer ser acordado por ninguém. “Meu sonho até tem nome. Chama-se Spiritual’s. Sonhar em inglês dá sorte. Atrai fortuna”, comunica. O livro traz referências a trabalhos anteriores, uma espécie de registro que une toda a obra do autor, num amplo retrato fiel às contradições e dramas nacionais. “Toca pro inferno, que já estou cheio de tanto paraíso”, diz o fugitivo preso no engarrafamento. No fim, resta mesmo dançar uma valsa – até porque talvez não reste alternativa, como deixa claro esse belo romance de um grande escritor acima de qualquer suspeita.

Um clássico dos trópicos

Melchíades Cunha Júnior
especial para o Jornal da USP – Universidade de São Paulo (24 a 30/06/1991), por ocasião do lançamento de Um Táxi para Viena d’Áustria pela Companhia das Letras.

Como fazer literatura nestes trópicos em tempos de pós-modernismo; nessa terra que se afasta a galope da civilização e avança com fúria para a barbárie? Como emergir deste oceano de mediocridades, misérias, corrupção, violência, modismos e desencanto em que meteram a pátria-amada-mãe-gentil? Ah, a produção cultural desse fim de milênio, a nossa e a dos outros…

E eis que surge Um Táxi para Viena d’Áustria, do baiano-paulista-carioca Antônio Torres (Companhia das Letras). Romancista bóia no oceano, grita-se da ponte.

Antônio Torres, agarrado em sua bóia, é de uma geração que se preparou para não naufragar. E não desistiu do preparo. É preciso estar atento e forte para manter-se um cidadão competente e não encher, com seu despreparo, a paciência do próximo (no caso, o leitor). Ah, se todos os que se metem com as letras soubessem disso… Torres preservou-se, também, como um bom cordial brasileiro, desses carregados do sentimento da justiça, mas sem as chatices do militante. Desses que, já na maturidade, descobre-se em andrajos para uma festa que será cada vez mais difícil de acontecer. Oh pátria-nossa-mãe-gentil, o que fizeram (fizemos todos?) com teus filhos? Oh, um táxi para a capital austríaca! A saída é procurar a saída, mesmo que a saída se chame morte? Já não se disse que é preciso morrer para se nascer?

Com o desencanto não se faz boa arte, sabemos todos. E o desespero tampouco a garante. E o mesmo se diga do talento: insuficiente, por si só, para gerar um “clássico; um cult, como se diz nos dia de hoje. E será possível escrever nesses nossos dias alguma coisa com gosto de novo, que valha o prazer ou o esforço da leitura, que mereça, enfim, ser publicado?

Ou o melhor será continuar perdendo/ganhando o nosso tempo apenas com o que de definitivo já se escreve sobre a condição humana – a razão primeira e última da criação literária? O bom preceptor (essa profissão em desuso há décadas) aconselhava a leitura e a releitura permanente dos clássicos. Está tudo lá, em livros que não se prendem ao estilo, época ou lugar em que foram escritos. Só que está cada vez mais raro aparecer um clássico, um cult, se preferirem.

Eis que um Táxi para Viena d’Áustria nasce como um clássico. Um clássico nos novos tempos brasileiros do cólera; e é um resgate geracional. De uma geração da qual muuitos já desistiram da pátria-linda-alcatifada-de-flores: uns partindo para outras paragens onde não canta o sabiá, outros se exilando pelo interior do país-maravilha, muitos se refugiando em cidadelas de altos muros, e outros tantos aderindo ao cinismo ou recorrendo aos desinfetantes.

Os resistentes, como Antônio Torres, testemunham que ainda estão por aí, escandalizando com o verbo e o chicote, como o Filho do Homem. Mas quando o horror é tanto será possível falar do horror sem provocar o bocejo do tédio? Torres conseguiu, apesar de insistir em que não precisamos mais dormir para termos sonhos maus. O sonho mau – ele nos diz – já dispensa o sono. Basta estar desperto e deambular pelas grandes cidades da pátria-amada-brasil.

Em Um Táxi para Viena d’Áustria, um veterano publicitário desempregado mata um amigo a quem não via há mais de vinte anos. Um gesto de comiseração, uma eutanásia? Não se sabe. Um absurdo, uma alucinação, uma perfídia? Um crime de morte, certamente. O Raskolnikof, de Dostoiévski, o Mersault, de Camus, também mataram. E nós nos apiedamos deles mais do que das vítimas. Para alguns será necessária essa descida aos infernos? Não há explicações (ou há?) para os dois tiros disparados por Veltinho na barriga falante do amigo, numa tarde azul, de muito sol naquele apartamento de Ipanema. O leitor é levado a uma espécie de cumplicidade. Poderia acontecer comigo…

Este último romance (ou novela?) de Antônio Torres o coloca, definitivamente, no time dos grandes. A densidade de seu relato ganha força a cada linha, num texto impecável, com quatro anos de garimpo. É um romance de sol, como O Estrangeiro; e de brumas, como Crime e Castigo. Do sol dos tristes e alegres trópicos. Trópicos cada vez mais brumosos, onde a alegria (gosto de viver?) para uma geração, como a de Antônio Torres, só pode ser obtida com o que se produz com a própria pena. E não espere reconhecimento, nem solidariedade.

Um Táxi é um desses livros que se lê sem pausas, de uma arrancada só. E nos convida, imediatamente, a uma segunda leitura.. Aí, então, o veredicto definitivo: estamos mesmo diante de um clássico.

P.S.: Um amigo, de geração mais recente, leu o livro de Antônio Torres e o que escrevi acima. Fez-me esta ponderação: “Suas colocações não valem apenas para a sua geração. Mesmo as mais novas, como a minha, que também sonharam em fazer o homem amigo do homem, sabem na pele o que é isso”.

TRANSVERSAIS DA LINGUAGEM

Muniz Sodré *
A Tarde Cultural, Salvador, Bahia (10/08/1991)

(Primeiro) Um franco-argelino atira num árabe, sem motivo, talvez por que o sol brilhasse mais forte naquele dia; (segundo) um brasileiro atira num compatriota, velho amigo seu, também sem motivo, por mero reflexo, querendo talvez livrá-lo de uma dor de barriga.

>Os dois gestos são insensatos, claro, o primeiro já é um clássico; trata-se do ponto de partida de O Estrangeiro, de Camus. O segundo, recente, como que detona a trama de Um Taxi para Viena d’Áustria, último romance de Antônio Torres.

>Entre o francês e o baiano, há o abismo de uma filosofia voltada para a sondagem das exigências essenciais do sujeito, matizadas pelo absurdo. O romance filosófico de Camus implica simplesmente em outro projeto de literatura.

>No entanto, algo em comum: o exame da condição humana. Só que o texto de Torres dispensa a metafísica em função da crônica patética de um publicitário desempregado que tenta fugir de táxi após seu absurdo gesto assassino. Isto, em lpanema, coração da Zona Sul carioca.

O carioca bem sabe que nenhuma fuga será segura na hora do rush. Pelo mar, não há saída; na rua, o imprevisível engarrafamento; por baixo, o buraco sem metrô. Nenhum vazio metafísico, pois, nenhum rombo originário, mas o concreto buraco sem fundos do país, tematizado no caos da cidade, na falta de emprego, na modernização sem fundamentos ético-sociais.

Confinado a um táxi, que por sua vez está imobilizado num engarrafamento, o personagem de Torres – Watson Rosavelti Campos (o Veltinho) é metáfora do Brasil, de um país que parece não andar.

Para desenvolver uma temática dessas seria bem viável adotar a poética da não-ficção, à maneira de um Truman Capote ou de um Norman Mailer. Ou então seguir o gosto de um Manuel Puig e, a partir dos recortes jornalísticos e televisivos sobre o cotidiano da cidade, construir uma narração em que se pudesse perceber a fragmentação da existência na grande urbe de hoje, especialmente a urbe sul-americana.

Torres não fez nada disso. Nada disso, entenda-se, em caráter exclusivo, já que fez tudo isso ao mesmo tempo, mesclando estilos, com bossa própria. A atmosfera estilística é a do realismo, mas sem a descrição certinha de incidentes, sem a composição retoricamente ordenada de situações humanas. Torres usa o presente do indicativo (um tanto na esteira do que fazia o hoje já antigo Nouveau Roman) para expor a consciência in actu de um personagem atravessado por vozes de todos os tempos, dele mesmo e de outras pessoas, inclusive a da própria Cidade.

Assim: “Ontem à noite eu não sabia que ia matar um homem. Nem ontem à noite, nem há poucos minutos atrás. É, acho que não faz nem uma hora que matei um homem. (…) Ontem à noite até sonhei com um anjo, que me fez um estranho apelo: – Pelo amor de Deus, não se entregue. (…) Achei que era uma mensagem, que traduzi assim: – Vai trabalhar, vagabundo. Vai à luta – Coisas de sonho. E sonho de desempregado”.

Ou então, a “a voz”, o mundo, é a televisão: “Em close: rugas, estrias, bolsas aquosas, olheiras. E os famigerados cabelos brancos. Ralos. Rareando. O que foi feito da sua vasta, crespa e selvagem cabeleira, senhor? Domesticou-se, ao se encanecer? Atenção, pessoal da produção, bota aí no áudio, em bg – quer dizer, baixinho – a velha “Folhas Mortas”, que a corrente transporta, ó Deus…”

Torres encontra-se aí em pleno ato de literatura, isto é, de transformar fragmentos de frases, fórmulas, sintagmas de língua coloquial e cotidiana marcada pela mídia em enunciados de uma língua própria que, nele ao contrário do táxi fabulado, é móvel e ágil.

Não, nada da escrita moderninha, colada a autores norte-americanos, tão cara a alguns experimentalistas da chamada pós-modernidade. A língua literária de Torres transmite uma experiência de plurilinguagem, por onde se expressa a modernidade caótica ou eclética demais (já pensaram um Junco fazendo ponto em Ipanema ou Mozart acompanhando Charlie Parker ao piano?) em que vivemos.

Neste caos, às vezes, como diz o protagonista Veltinho, dá “vontade de correr, correr, correr.  Como um atleta, um louco, um bandido”.  O que é de bom alvitre, pois este país, como o táxi, não aparece achar as suas transversais.  Ou então, com a mesma vontade de O Estrangeiro, esquecer o tiro e mandar o motorista tocar assim mesmo para Viena d’Áustria.

* Muniz Sodré é professor-titular da UFRJ e escritor, autor de O monopólio da fala (ensaio) e Santugri (contos).

UM NOVO E EXCELENTE ROMANCE

José Olympio da Rocha*
Tribuna da Bahia/16.06.91

Dificilmente você poderá interromper a leitura do novo romance de Antônio Torres, Um Táxi para Viena D’Áustria. O que não é surpresa, pois desde Um Cão Uivando para a Lua (1972) o autor baiano revelou-se um dos escritores mais promissores do Brasil. Torres, ex-jornalista (“precisei abandonar o jornalismo para escrever ficção”, disse ele) transferiu-se definitivamente para o Rio de Janeiro, onde conseguiu sobreviver como publicitário. Certamente agora, depois que seus livros foram traduzidos com sucesso para vários outros idiomas, Antônio Torres poderá dedicar-se com mais tempo à literatura. E o maior exemplo de que isso é o que acontece, é este novo romance: inventivo, bem trabalhado na sua linguagem, brilhantemente irônico e mordaz, com uma dose de humor sadio, quase um hino simples aos prazeres da vida.

A inventividade do autor está cada vez mais acentuada. Aqui ele disseca o homem urbano, com sua tragédia cômica, o dia-a-dia de uma cidade como o Rio de Janeiro. Torres compõe essa sinfonia, esse perfil da cidade grande, através de um painel em que ele toma emprestado as letras da música popular, as gírias, o ritmo cotidiano de um viver que passa pelos apartamentos de classe média, sobe até os morros e explora o estranho humor dos que vivem na adversidade: “Quero um dia de luz, festa do sol, um barquinho a deslizar, no macio azul do mar/Por que esqueceram de me avisar que hoje à tarde ia ter um caminhão da Coca-Cola atrapalhando o tráfego?/É isso aí. It’s the real thing. É pau, é pedra, é o fim do caminho. É um caminhão atravessado, engarrafando o verão. Moro na zona sul. Quero o mar. E não essas ruas interrompidas, selvagens – esse beco sem saída. E também quero ver se os jornais vão ter coragem de sair amanhã com uma manchetona assim: Acidente da Coca-Cola foi provocado pela Pepsi”.

Antônio Torres é um cronista urbano, do dia-a-dia, os episódios que constituem a sua narrativa podem ser notícias tiradas de um jornal (como um acidente no carro da Coca-Cola onde os meninos do morro fizeram a festa), as letras de música que bem defi­nem o espírito carioca: “Quero um dia de luz, festa de sol, um barquinho a deslizar, no macio azul do mar”.

Torres sabe ironizar este sempre ridículo e sem rumo país que se chama Brasil: “Ela continua fiel à Santa Madre Igreja de Roma. Ainda não se japonezou na Igreja Messiânica. Não se americanizou com os evangélicos, os adventistas, as testemunhas de Jeová. Não se africanizou,na umbanda. Nem se universalizou no espiritismo. Continua uma fidelíssima católica apostólica romana. Como que minha mãe ainda não virou esotérica? Tantas seitas, tantos credos, no varejo e no atacado! Era agora que ela ia gostar de ver o mundo”.

O Brasil narrado por Antônio Torres é este que você conhece: tão confuso como o bruto engarrafamento de uma zona urbana, tão cômico e ao mesmo tempo tão ridículo e sem rumo como a própria política econômica. Não se pode negar que o leitor está diante de um livro originalíssimo, gostoso de se ler, uma prosa enxuta e poética ao mesmo tempo, irônica e atual. É assim Um Táxi para Viena D’Áustria.

Precisamente porque é um autor inventivo é que ninguém consegue largar esta narrativa, com sabores para todos os gostos, sem ser comercialmente submisso ao leitor: “Não contar nada sobre aquela vez que você ficou olhando pelo buraco da fechadura enquanto a espanhola tomava banho. Ela se ensaboando e cantando. E você chupando o dedo. Ela alisando os seios e cantando – e você alucinado. Ela esfregando as coxas e cantando – e você comendo a espanhola com o olho e vendo estrelas. Lânguida, louca, caliente, salerosa, ela transbordava em água e desejo, roçando cabelos, pele e labirintos… de ternura. Voz rouca de tanto cantar o mesmo bolero: Solamente una vez…”

A beleza da prosa de Antônio Torres é por si só um motivo muito forte para você chegar até o fim. E ter pena de acabar essa leitura.

* José Olympio da Rocha é crítico literário.